“Dormi com dois filhos e acordei com quatro”. É assim que a professora Rosekeyla Costa, 45, relembra a madrugada do dia 7 de junho de 2020, quando despertou sem a irmã, Roseanne Moreira, 40, morta pela Covid; e com a responsabilidade de cuidar dos sobrinhos pequenos.
De março do ano passado até ontem (8), 8.146 mulheres cearenses tiveram o convívio com as famílias encerrado em definitivo pelo coronavírus. Do total, 48 delas eram gestantes ou puérperas, que deram à luz há até 45 dias. O número de órfãos de mãe, por outro lado, não se conta.
Só Roseanne deixou dois: João Neto, hoje com 6 anos, e Maria Catarina, que completa o primeiro no próximo dia 17. Ao contrário do irmão, que “conheceu o amor da mãe por 5 anos”, a pequena só passou quatro dias nos braços dela, contato interrompido por uma internação da qual Roseanne não voltaria.
“Na maternidade, pessoas com ou sem suspeita de Covid ficavam juntas. Ela já voltou de lá com fadiga e falta de ar. Dias depois, eu fiquei com a bebê e ela retornou ao hospital. Foi diagnosticada, ficou na UTI e já não vimos mais. Faleceu 15 dias depois”, narra Rosekeyla.
“Não tive tempo pro luto”
Após a partida devastadora da irmã, a professora diz que “nem teve luto”. Com os próprios filhos, de 6 e 11 anos de idade, e os sobrinhos de 4 dias e de 5 anos no colo – cujo pai e recém-viúvo amargava a aguda e imobilizadora dor da perda –, Rose se fez “amor, carinho e atenção”.
“A Catarina, de certa forma, vai ver a mãe em mim: foi o meu rosto, meu toque e meu cheiro que ela gravou. Eu me preocupo mais com o João. Minha irmã viveu pra ele, brincava, fazia tudo. E de repente ele ficou sem isso”, reflete. Hoje, João, 6, chama a ex-eterna madrinha de mãe.
Ele e a irmã moram com o pai, Otávio Kerensky, em um prédio vizinho ao de Rose – a quem ele confia, todos os dias, os cuidados com os filhos e a tarefa de ser “referência de figura feminina” para Catarina.
Ter filhos é, além de um ato de amor, confiar e ter fé no mundo. É uma tentativa de criar uma boa pessoa pra melhorar a humanidade. É um ato de responsabilidade, de dar e receber amor.
“Ela deixou o filho homem que nunca tive”
Missão semelhante é encarada há 1 mês e 8 dias por Irani Alves da Silva, 53, cuja filha mais velha morreu de Covid no dia 30 de março deste ano. Maria Dolores da Silva partiu aos 27 anos, deixando Sarah, de 7, e João Lucas, recém-nascido, sob os cuidados da avó.
Grávida e com sintomas gripais, a jovem procurou atendimento médico e testou positivo para o coronavírus numa UPA do município de Horizonte, onde morava, a cerca de 32 km de Fortaleza. O quadro piorou de forma muito rápida, fazendo com que o beijo que não deu em Sarah ao sair de casa, por proteção à saúde da filha, fosse o último.
João Lucas, “retirado” em um parto emergencial, ficou hospitalizado do dia 18 de março até a última terça-feira (4), quando teve alta e voltou para a casa de Irani, tornando-se “o filho homem” que ela nunca teve. Presente-missão deixado por Dolores, como acredita a mãe.
“Minha filha deixou dois frutos pra mim. O pai da Sarah disse que ela vai ficar comigo, e ele paga a pensão. O do João disse a mesma coisa. Hoje, não posso mais trabalhar. Vou cuidar dos meus netos”, sentencia Irani.
Em certos dias, contudo, a tarefa massacra mais. A necessidade que a dona de casa sente de “se manter de pé, forte” tropeça nas dificuldades financeiras, na dor e na saudade da primogênita, que partiu na véspera do aniversário de 53 anos de Irani, completos em 1º de abril. Antes fosse mentira.
Sinto pela perda da filha e pela dor que minha neta está sentindo. Mas minha força eu tiro de Deus. Tento me manter em pé, jamais quero fracassar. Onde ela tá agora, tá feliz, por eu estar cuidando dos filhos dela.
“Não sou minha mãe, mas sou quem eles têm”
Nem uma, nem duas, nem três, mas 66 pessoas ficaram órfãs após a morte de Maria Benedita Lima Bento, aos 70 anos, no início da primeira onda de Covid em Fortaleza. Conhecida como “Tia Bia”, a idosa ficou conhecida por “adotar” dezenas de crianças, entregues nos braços ou deixadas na porta de casa, na periferia de Fortaleza.
Quando questionada sobre quantos dos filhos eram biológicos, Maria chorava. Eram todos dela, não importava o sangue. Não se pergunta isso a uma mãe. Uma delas, porém, é Francisca Elizabete Lima Bento, 42, a segunda que nasceu do ventre da matriarca – cuja cria mais velha tem, hoje, 50 anos, e a mais nova, 15.
“Quando eu era pequena, chegou a primeira criança. Ela colocou pra mamar no próprio peito. E aí foi criando, criando. Eu mesma passei de 3 meses no hospital com irmãos doentes. Sempre ajudei ela”, relembra Elizabete.
De todos os filhos, seis precisam ser cuidados pela irmã, agora. São os adolescentes que sobraram. Elizabete se divide, então, entre os cuidados com os três filhos, de 1, 2 e 17 anos; e os irmãos, de 13 a 15 anos. A casa onde eles moram chegou a abrigar 25 pessoas simultaneamente.
Ela criou muita gente, todos chamavam ela de mãe. E todos são pessoas maravilhosas, que estão sofrendo com a partida dela – a melhor pessoa que eu já conheci. Como ela não vai ter mais ninguém.
“Tia Bia” ficou hospitalizada em tratamento contra a Covid por um mês, luta que cessou no dia 24 de maio. Pelo conhecido “medo de ficar só”, que a levou a encher a casa de filhos e a estar “sempre rodeada de gente, se recusava a ser internada. Mas ficou, e partiu num cenário oposto ao que viveu.
“Vai ser o segundo Dia das Mães sem ela, o primeiro ela passou no hospital. A saudade é enorme, mas ela ensinou tudo o que eu sei. Sobre ter amor pelo próximo, ajudar, dividir. E isso eu passo pros meus irmãos.”
Mulheres e o “papel” de cuidado
A atribuição às mulheres de funções ligadas ao cuidado, principalmente em relação à família, está enraizada na sociedade, na cultura e até no sistema econômico, como explica Celecina Sales, professora do Departamento de Estudos Interdisciplinares da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Na sociedade capitalista, há essa divisão entre o mundo público e o privado. A casa é o lugar da mulher, que cuida do lar, das crianças, dos doentes. A ela é atribuído esse papel de cuidado. E ao homem, o de provedor”, analisa a pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família (Negif/UFC).
Celecina explica que esse contexto continua refletindo na sociedade atual, e até evidenciado pela pandemia.
Inclusive as profissões: quando a mulher vai trabalhar fora de casa, vai como enfermeira, assistente social, secretária, professora infantil, por exemplo. Tudo isso reflete essa cultura.
Essa atribuição do cuidar, por outro lado, “deve ser revista”. Um dos motivos, destaca Celecina, é que há mulheres que não desejam ser mães, por exemplo. Outra questão é a sobrecarga que essa estrutura pode gerar.
“No momento da pandemia, o papel das mulheres, principalmente as mães, tem sido muito difícil. Precisamos refletir sobre isso, sobre como a nossa sociedade está organizada”, finaliza.