Covid-19: aglomerações favorecem eventos de 'supertransmissão'

Em determinadas ocasiões, cientistas apontam que um indivíduo pode transmitir o novo coronavírus para mais pessoas do que o esperado. Desafio é identificar precocemente os casos suspeitos e monitorar rede de contatos de quem apresentar sintomas da doença

A pandemia de Covid-19 não acabou. Esse é um lembrete constante das autoridades de saúde no Ceará porque, dada a liberação de diversos setores da economia, aumentou a circulação de pessoas em ambientes abertos e fechados. No entanto, o alerta permanece. Alguns estudos científicos sugerem que determinadas pessoas podem ser "supertransmissoras" do novo coronavírus, ou seja, em ambientes limitados e aglomerados, elas facilitariam a transmissão do agente.

Um dos principais elementos para analisar a evolução da pandemia é a taxa de reprodução (RT), que determina o número médio de infecções causadas por cada doente. Com a taxa em 1, por exemplo, cada infectado poderia transmitir para uma outra pessoa. De acordo com o último boletim epidemiológico do Comitê Científico do Consórcio Nordeste, o Ceará tinha, na última semana, valores de RT entre 1,01 e 1,50, "o que indica provável crescimento da transmissão de casos no Estado".

 

Contudo, algumas pesquisas indicam que, enquanto alguns doentes infectam muitas pessoas, outros parecem não ser transmissores. Por isso, cientistas investigam mais um indicador: o chamado fator de dispersão K. Em teoria, ele descreve o quanto a doença atua em surtos. Quanto mais baixo for o K, mais a transmissão poderá ter tido início num pequeno número de pessoas.

Keny Colares, médico infectologista do Hospital São José (HSJ) e consultor da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE), explica que o fenômeno da supertransmissão não é novo e já foi estudado, inclusive, nos outros coronavírus. No entanto, ele percebe ser mais adequado não colocar a atenção sobre indivíduos, mas sobre "eventos supertransmissores".

"É difícil a gente se precaver quanto ao vírus baseados no indivíduo. Acho que precisamos criar ambientes adequados que previnam a transmissão, porque salas e ambientes fechados parecem ser mais suscetíveis a ela", considera. Para ele, precisam ser observados fatores como a quantidade de pessoas, o uso de máscaras, a ventilação do ambiente e o comportamento dos indivíduos - se falando ou cantando, por exemplo, já que essas ações favorecem a dispersão de partículas.

Até o momento, também não há explicações científicas para que uma pessoa seja considerada mais competente na transmissão do vírus. Para Colares, isso tem a ver com a carga viral e o momento da infecção em que o paciente se encontra. "Quanto mais vírus essa pessoa tiver, mais pode transmitir. Ela vai eliminar mais alguns dias antes de começar a ter sintomas e logo nos primeiros dias de sintomas. Às vezes, são pessoas até assintomáticas ou com sintomas leves", diz.

Monitoramento

O valor do fator K do novo coronavírus (Sars-Cov-2) ainda não pode ser definido com precisão. A London School of Hygiene & Tropical Medicine estima que ele varie de 0.1 a 0.5. Ou seja, provavelmente, entre 10% e 20% dos casos levam a 80% dos contágios. Segundo a revista científica Science, há casos de surtos localizados "em que uma pequena parcela de pessoas é responsável por uma grande proporção de infecções".

Fenômenos de contaminações múltiplas não foram estranhos no Ceará. No fim de março, diversos familiares de uma idosa de 85 anos que faleceu por Covid-19 apresentaram sintomas da doença. "A gente nem consegue identificar onde foi a transmissão. Imaginamos que tenha sido num aniversário que fomos no dia 7 de março. Depois dele, todo mundo começou a adoecer, mas ninguém tinha viajado ou teve contato com alguém com sintomas. No mesmo período, foram umas 30 pessoas com sintomas", conta um familiar.

Ainda em abril, também chamou atenção que 12 membros de um mesmo grupo religioso de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza, tenham sido diagnosticados com a doença. A Secretaria Municipal de Saúde disse que os integrantes podem ter sido infectados em um evento com a presença de pessoas de outros países. O grupo negou que tal evento tenha ocorrido.

Para o infectologista Keny Colares, o rastreamento de contatos é questão de "organização da rede", já que o Ceará já conseguiu ampliar a capacidade de testagens RT-PCR, o mais indicado para detectar a infecção. Desde abril, a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) implantou a estratégia de Contact Tracing para acompanhar, por meio telefônico ou visitas domiciliares (em caso de não obterem retorno), os pacientes suspeitos.

Além disso, a partir deste mês, os contatos de pacientes com a Covid-19 passaram a ser rastreados por 2,7 mil profissionais de saúde, em todos os 184 municípios do Ceará, por meio de um programa do Ministério da Saúde. A Pasta federal repassou R$ 16,6 milhões ao Estado para a realização da tarefa.

Complementar

"Isso precisa mais do que laboratório, mas de estruturação da rede SUS e complementar para uma atividade que não estavam acostumados a fazer, de uma certa preparação que a rede ainda está aprendendo. Nos países que têm controlado melhor a doença, esse tem sido um aspecto fundamental", afirma o especialista.

Além disso, Keny defende que eventos de supertransmissão sejam evitados. Uma das medidas do Governo do Estado nessa prevenção foi o anúncio de que a realização de eventos festivos em ambientes fechados no Ceará está proibida desde a última segunda-feira (26). O governador Camilo Santana também reforçou a importância da Justiça Eleitoral e do Ministério Público Eleitoral no monitoramento de eventos durante a campanha política em curso.

"Claro que também é importante observar a curva de casos e óbitos, a proporção de testes positivos, o rastreamento de casos e contatos. Para todo caso que aparecer deve ser feito o teste no suspeito e nas pessoas próximas a ele, e afastar essas pessoas. É um conjunto de medidas que a gente pode fazer para conviver com essa doença até que apareça uma solução mais eficaz. Não sei se a vacina vai trazer essa tranquilidade pra gente. Só o tempo vai dizer", completa Keny Colares.