Como a pandemia de Covid-19 modificou a rotina de atendimento em hospitais públicos do Ceará

A pandemia pressionou a rede pública de saúde a reinventar o diálogo com pacientes e famílias e a cuidar de forma integral e humanizada tanto de quem é assistido quanto de quem promove a assistência

Se antes da pandemia de Covid-19 era urgente o debate sobre a inserção de práticas humanizadas no atendimento hospitalar, hoje, é inconcebível tratar pacientes infectados sem os compreender como gente, em sua plenitude. São idosos, adultos, adolescentes, crianças e bebês com narrativas próprias, marcados por uma das maiores crises sanitárias da história, e que necessitam de cuidados que vão muito além de remédios, leitos e ventiladores mecânicos.

Há um ano, quando a pandemia começou, a primeira atitude que precisou ser tomada foi de afastar as pessoas, numa tentativa desesperada — e acertada — dos governos de conter a proliferação de um vírus sobre o qual se sabia pouco, e poupar a rede de saúde do colapso.

Mas, isso teve um preço alto. Com o distanciamento, as famílias, que a medicina já entendia como parte importante do processo de cura de um doente de qualquer enfermidade, foram impedidas de acompanhar as trajetórias dos pacientes nos hospitais, o que pressionou profissionais da saúde a arranjar outras formas de manter os acamados perto dos seus.

Por isso, em abril de 2020, foi criado o Jandira, um projeto do Instituto Dr. José Frota (IJF), que usa tecnologia para tanto manter o vínculo entre pacientes e seus familiares ou pessoas de referência como, também, para responder dúvidas sobre prontuários clínicos e evolução da doença.

Jandira

Inspirado em uma servidora do IJF de mesmo nome, conhecida por prestar atendimento humanizado aos pacientes do hospital, Jandira é posto em prática todos os dias, à tarde, para pacientes de enfermaria com bom quadro clínico e que quiserem falar com suas famílias. 

Com tablets em mãos, assistentes sociais passam de leito em leito, conversam com os doentes e estabelecem videochamadas. “A gente deixa livre. Cada família, cada paciente tem sua necessidade. Não existe pressão para terminar logo”, explica Vivianny Bezerra, chefe do núcleo de serviço social do IJF. “Algumas vezes, eles não querem e a gente respeita”, relata.

Com o projeto, segundo ela, foi possível inserir na dinâmica do hospital uma “cultura de atendimento” fundamentada no diálogo e no cuidado do paciente, que demanda atenção não somente do profissional médico, mas, também, de fisioterapeutas, psicólogos, terapeutas ocupacionais e outros.

“O paciente não é só a doença, não é só a Covid-19. Ele traz também todas as suas questões sociais e econômicas”, compreende Vivianny. 

Para a psicóloga, “a escuta familiar [no hospital] ficou muito mais qualificada” depois do projeto. Além disso, Jandira também tem sido usado para informar às famílias sobre direitos sociais dos pacientes e para minimizar a dor da não vivência do luto, principalmente por familiares idosos que não podem se expor numa unidade de tratamento da Covid-19 para se despedir dos seus. Nesse sentido, diz a profissional, Jandira “traz um certo alívio”, porque “luto é uma coisa muito pesada quando a gente não vivencia”.

Num contexto em que muitos profissionais da saúde, mesmo desgastados, buscam reinventar a própria profissão para se adaptar à nova realidade, Vivianny diz que o Jandira tem ensinado o IJF a dialogar melhor com pacientes e familiares. “A gente tem a oportunidade de, ao longo dos dias, ir aprimorando nossa forma de falar. O boletim médico deixou de ser padrão”.

Nesta sexta-feira (26), pouco antes de falar à reportagem, a engenheira de telecomunicações Nacarle Figueiredo Delmiro, 39, havia acabado de conversar com sua mãe, Inalda, 76, pelo Jandira. “Ela está super corada, chega se emocionou, a lágrima desceu. Consegui reunir minhas irmãs, os netos, para todo mundo participar”, narrou. 

Inalda está há quase um mês internada no IJF e vem melhorando aos poucos. Viu Nacarle por videochamada, pela primeira vez, no dia 22 de fevereiro, na véspera do aniversário da filha, e, desde então, segue a “encontrando” todas as tardes.

Nacarle conta que estava dirigindo quando recebeu o telefonema do hospital perguntando se ela teria disponibilidade para fazer a chamada. “Parei o carro. Nunca vou esquecer. Foi um presente de aniversário, não consigo descrever”, lembra. Apesar de trabalhar com tecnologia, a engenheira conta que jamais imaginou o impacto da ferramenta numa situação como a que está enfrentando: “É como se você estivesse dando um abraço na pessoa”.

Entrelaços

Também criado ano passado, pouco após a suspensão de visitas presenciais, o podcast Entrelaços, do Hospital Dr. César Cals, faz parte das mudanças que aconteceram no atendimento da instituição às famílias de bebês internados no setor de neonatologia.

A ideia partiu de um grupo de residentes do setor, no momento em que o hospital começou a estabelecer visitas virtuais de mães e pais aos bebês acamados, por meio de ligações, videochamadas e envio de fotos e áudios pelo WhatsApp. Nesses atendimentos, os profissionais passaram a perceber o quanto, principalmente, as mães, tinham dúvidas sobre questões além dos prontuários dos próprios filhos, como, por exemplo, como funciona a ambiência das unidades neonatais e para que servem equipes multidisciplinares.

Disponíveis no Spotify, os episódios também são enviados individualmente a cada mãe e pai, pelo WhatsApp.

“A gente sabe que todas as nossas estratégias não são capazes de substituir a presença, mas vêm no sentido de mitigar o impacto do distanciamento. Não fossem elas, as consequências seriam muito mais severas”, admite a psicóloga Eleonora Pereira Melo, que trabalha na UTI Neonatal e chefia o centro de psicologia do hospital.

Segundo a psicóloga, não tem sido fácil adaptar todo o protocolo de atendimento às restrições impostas pela pandemia. “Tivemos de criar formas de trabalhar diante dessas novas demandas e pensar em estratégias que até na literatura a gente não conseguia encontrar”. Contudo, apesar das dificuldades, ela se alegra de as medidas estarem funcionando. Mesmo por áudio ou videochamada, ela conta que há bebês que demonstram sentir as próprias mães, reconhecendo suas vozes e relaxando ao ouvi-las.

Diminuindo distâncias

O Hospital Regional Norte, em Sobral, também incorporou ao atendimento hospitalar as visitas virtuais. Por meio de tablets, os pacientes entram em contato diariamente com amigos e familiares e mantêm o vínculo com os seus, apesar da distância física imposta pela pandemia. Além disso, o hospital também montou um plantão de acolhimento familiar para repassar às famílias informações sobre os internados e tirar dúvidas em horário comercial.

Escuta qualificada

O Hospital São José é referência no tratamento de doenças infecciosas e, por isso, desde o início da pandemia de Covid-19, a unidade é uma das mais demandadas da rede pública, o que sobrecarrega física e emocionalmente quase todo o quadro de funcionários.

Para dar suporte psicológico aos profissionais, foi criado, em março do ano passado, um projeto de escuta qualificada para acolher aqueles que estivessem enfrentando qualquer tipo de sofrimento emocional. “A gente não tinha casos de Covid-19, não conhecia. Isso deixou os profissionais inseguros, com medo de levar contaminação para casa”, lembra a psicóloga do São José, Níveamara Sidrac.

Níveamara relata que, além da sobrecarga de trabalho, o medo de espalhar o vírus fez com que muitos profissionais da saúde sofressem de insônia, ansiedade e pânico e chegassem até mesmo a passar uma temporada fora de casa para não infectar a família. “As demandas continuam, mas percebo que muitos deles já estão mais fortalecidos”, assegura a psicóloga. Segundo ela, muitos dos que procuram o atendimento não fazem ou nunca fizeram terapia.

“A gente se propõe a fazer essa escuta, que é o primeiro cuidado psicológico, mas a gente também encaminha para a terapia quando percebe alguma coisa pré-existente ou latente” como ansiedade e depressão, diz Níveamara, que acredita que, quando um profissional é escutado e acolhido, ele consegue se reenergizar e isso reflete na qualidade da relação entre ele e o paciente que está assistindo. “É estar bem para poder atender bem”, resume ela.

Práticas integrais

Medo, insegurança, ansiedade e estresse também estão presentes na rotina dos profissionais que trabalham no Hospital de Saúde Mental e no Hospital Geral Dr. Waldemar Alcântara ao longo da pandemia. Nessas unidades, também se investiu em projetos de cuidado integral dos funcionários — não só da linha de frente — para que pudessem melhor atender os pacientes.

Além de atendimento psicológico uma vez por semana, são oferecidas terapias holísticas e integrativas, acupuntura, musicoterapia, meditação, ioga e outras atividades centradas na pessoa.