Cerca de 18 mil crianças estão sem vacina pentavalente em Fortaleza

Distribuição das doses nos postos de saúde está irregular desde agosto de 2019, por desabastecimento do Ministério da Saúde; crianças a partir de 3 meses estão expostas a pelo menos cinco doenças, incluindo hepatite B e meningite

O caminho que as vacinas têm de percorrer até chegar aos postos de saúde é longo, burocrático e sujeito a obstáculos. As remessas da pentavalente e das doses de reforço que deveriam imunizar bebês de Fortaleza, por exemplo, tropeçaram em um dos imprevistos e estão com distribuição irregular no Ceará e demais estados brasileiros desde agosto do ano passado. Hoje, cerca de 18 mil crianças na capital cearense estão sem a proteção, expostas a pelo menos cinco doenças graves, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

Segundo Vanessa Soldatelli, coordenadora de imunizações da SMS, o Estado chegou a ficar dois meses sem receber nenhum repasse das vacinas pelo Ministério da Saúde (MS), o que gerou uma demanda reprimida de nove mil crianças, em média, para cada mês de falta. "A pentavalente veio mês sim, mês não. Foram dois meses sem a chegada da vacina. A DTP (reforço) veio até agosto, depois não veio mais. Mas a maior preocupação é com a 'penta', porque ela é a primeira proteção dos bebês contra as infecções".

A vacina pentavalente é obrigatória no Calendário Nacional de Vacinação, e deve ser aplicada nos bebês aos dois, quatro e seis meses de idade, garantindo a imunização contra difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e a bactéria Haemophilus influenza tipo B, que pode causar meningite e outros tipos de infecções. Já as chamadas doses de reforço ou complementações são feitas por meio da vacina adsorvida difteria, tétano e pertússis (DTP), voltada a crianças a partir de um ano.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que "a remessa de vacina pentavalente, adquirida por intermédio da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), foi reprovada em teste de qualidade feito pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) e análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)".

Por esse motivo, "as compras com o antigo fornecedor, a empresa indiana Biologicals E. Limited, foram interrompidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)".

O órgão confirmou que o abastecimento estava parcialmente interrompido desde julho e deveria ser normalizado a partir de novembro do ano passado. Quando os estoques forem estabilizados, aponta a Pasta Federal, equipes do Sistema Único de Saúde farão busca ativa pelas crianças que completaram dois, quatro ou seis meses de idade entre os meses de agosto e novembro, para vaciná-las.

Insuficiente

A coordenadora de imunizações de Fortaleza, contudo, afirma que a gestão municipal "recebeu, só em janeiro, apenas a quantidade de rotina normal para um mês": 9 mil doses de pentavalente e 5 mil da DTP, repasse ainda insuficiente para vacinar as crianças descobertas durante o período de falta. Para todo o Estado, conforme a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), foram enviadas 83.500 doses da vacina pentavalente e 60.840 da DTP, de agosto de 2019 até janeiro de 2020.

A professora Railane Morais, 35, precisou "madrugar" para conseguir uma dose da vacina para o bebê Igor, de 3 meses, em um posto de saúde do bairro Lagoa Redonda, na Regional VI da Capital. Só encontrou semana passada. "Chegaram só 50 doses no posto, madruguei e consegui. Eu ficava ligando e olhando as redes sociais das secretarias de saúde, para ver se chegava. Procurei em vários cantos, por praticamente um mês, e vi várias mães com bebês de até 5 meses que nunca tinham tomado. Só diziam que não tinha previsão", relembra.

Clínicas particulares

Recorrer às clínicas particulares foi a única opção encontrada pela dona de casa Ana Karine Batista, 40, para garantir a saúde do filho, após dois meses peregrinando entre postos da Capital. "Não tinha mais condição de esperar e recorri à via particular. Paguei R$ 300 pela primeira dose, e agora vou pagar mais R$ 300 pela segunda, parcelado. É um valor considerável, já que tenho outros filhos que estudam. Fico imaginando outras mães que não têm de onde tirar dinheiro ou um cartão de crédito. Ficam à mercê, e os filhos sem acesso ao que é direito deles", avalia.

É o caso da família da costureira Marta Sousa, 45, que tem enfrentado uma preocupação dupla: as duas netas, de 5 meses e de 1 ano e 5 meses de idade, estão sem a imunização. "A mais nova ainda não tomou nenhuma dose, a mais velha não conseguiu o reforço, tá tudo atrasado. A gente se preocupa, porque elas estão totalmente desprotegidas", lamenta a avó, que mora no município de Viçosa do Ceará, na divisa com o Piauí; enquanto as netas vivem em Maracanaú, Região Metropolitana de Fortaleza.

"Os pais delas procuraram em vários postos, de vários bairros, mas nada. Só dizem que tá faltando em todo canto e que não tem previsão de chegar. Aqui na cidade eu fico perguntando também, por que se chegar e elas puderem vir tomar, vêm. A gente não tem condição de comprar a vacina no particular, ainda mais sendo duas", declara Marta.

Para Vanessa Soldatelli, o cenário é preocupante e requer cautela porque, caso se prolongue, pode facilitar o retorno das doenças que podem ser prevenidas.

Cenário preocupante

"As crianças que tiveram acesso à pentavalente podem ficar tranquilas, porque precisam só da dose de complemento, que reativa a imunidade e garante dez anos de proteção, até o reforço na fase adolescente e adulta. Com as crianças que não tiveram nenhuma dose da penta, precisamos ter mais cuidado. Recomendamos que os pais não saiam muito para praias, festas de aniversário, igrejas e shoppings, que têm grandes aglomera, diz Soldatelli.

A incidência das doenças que podem ser prevenidas por meio da pentavalente é relativamente pequena. A difteria teve apenas um caso confirmado no Ceará (em 2003), entre 1997 e 2018, de acordo com boletim do Ministério da Saúde. Outras doenças, porém, continuam presentes. Em 2019, foram registrados 11 casos de tétano, quatro deles na Capital; de coqueluche foram 29 casos, sendo nove em Fortaleza. Já a hepatite B contabilizou 196 infecções e cinco mortes em todo o Estado - 77 dos casos e uma das mortes foram anotados em Fortaleza.

Outra doença grave à qual crianças estão expostas sem a imunização é a meningite causada pela bactéria Haemophilus influenza tipo B. No Ceará, ano passado, foram 423 casos e 29 mortes contabilizadas por "meningites", não especificado o causador. A Capital concentrou 227 dos registros e nove dos óbitos. Todos os dados são do último boletim epidemiológico de 2019 da Secretaria Estadual da Saúde.

Para Vanuza Chagas, pediatra e coordenadora de uma clínica de imunização particular, a preocupação de pais e profissionais de saúde é justificada pela vulnerabilidade de crianças a enfermidades sérias. "Manter o calendário em dia é importante para evitar doenças que se comportam de forma muito grave no primeiro ano de vida. São doenças que podem deixar crianças internadas com complicações severas", alerta.