Quando as oportunidades no mercado formal de trabalho são escassas e a vulnerabilidade social está em demasia - com a ameaça da fome -, cenário constante na pandemia da Covid-19, mais cearenses ficam suscetíveis ao trabalho análogo à escravidão. Boa parte deles, inclusive, é aliciada para exploração em outros estados como Bahia e São Paulo.
Entre 2018 e 2021, 140 pessoas de origem cearense foram resgatadas em situações degradantes em outros estados brasileiros. O número é praticamente o dobro do que as liberações feitas no Ceará, com 74 resgates entre 2018 e 2021 - o que corresponde a 34,5% de todos os casos.
Os dados são de relatórios da Superintendência Regional do Trabalho no Ceará (SRT/CE), levantados a pedido da reportagem do Diário do Nordeste até o fim de dezembro. As informações devem compor o banco de dados nacional sobre o assunto em janeiro.
“Pelo histórico do Ceará, de trabalhadores resgatados, pode ser destacado que a situação de vulnerabilidade é uma forma de manipulação para convencer esses trabalhadores a aceitarem qualquer condição de trabalho", analisa Daniel Arêa, chefe da Fiscalização do Trabalho no Ceará do SRT.
Um exemplo desse cenário ocorreu no interior da Bahia: em setembro de 2020, 43 trabalhadores com origem no Ceará entre 53 resgatados em Xique-Xique.
Todos os cearenses foram aliciados em Martinópolis, na região norte do Ceará, e levados para atuar na extração da carnaúba. O grupo vivia em alojamentos precários e sem alimentação adequada.
No local, foram encontrados alimentos guardados em sacos no chão no que as refeições eram preparadas em tijolos. Os trabalhadores lavavam roupas de cócoras e sob o sol por falta de estrutura. Sete resgatados, ainda, precisam dormir no mato, embaixo de árvores, pela falta de abrigo.
Processos judiciais
Os processos judiciais sobre casos de trabalho análogo à escravidão no Estado cresceram 28% nos últimos três anos. Até novembro de 2021, 23 ações foram registradas pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT/CE).
Em todo o ano de 2019, foram 18 ações judiciais relacionadas ao crime de serviço semelhante ao de pessoas escravizadas.
O ano de 2021 também foi de aumento no número de resgates, com 32 vítimas em situação degradante de trabalho no total de cinco ações fiscais. Em 2020, apesar do mesmo número de ações, não houve pessoas resgatadas.
Os casos se concentraram no setor da extração da cera de carnaúba e da construção civil com destaque para a zona rural do Estado. Contudo, a percepção de quem atua na coibição dos crimes deste tipo é de aumento dos casos em Fortaleza e Região Metropolitana (RMF) desde a aprovação da Reforma Trabalhista.
Além disso, o contexto de aumento da pobreza e do desemprego durante a pandemia da Covid-19 está relacionado com maior número de pessoas submetidas às situações degradantes.
“Muita gente parou de receber suas formas de sustento, então as pessoas começaram a se sujeitar a qualquer tipo de trabalho com promessa de salário”, analisa Daniel Arêa, chefe da Fiscalização do Trabalho no Ceará da SRT.
Em circunstâncias mais suscetíveis aos excessos nas condições de trabalho, as fiscalizações e julgamentos deste tipo de crime se tornam ainda mais relevantes.
“Nosso maior desafio é conscientizar os maus empregadores que não compensa explorar os trabalhadores na condição de escravo”, destaca Franzé Gomes, desembargador e gestor regional do Programa Trabalho Seguro do TRT/CE.
Com a reforma trabalhista em que diminuiu alguns direitos dos trabalhadores, que diminuiu força sindical, nós estamos notando alguns trabalho análogo ao escravo na zona urbana, principalmente, na construção civil
As penalidades para quem submete outras pessoas ao trabalho escravo estão descritas no Decreto-Lei nº 2.848, de 1940. O texto prevê reclusão de cinco a 10 anos e multa com possibilidade de agravamento conforme a situação encontrada no local de trabalho.
“É imposta uma multa, o empregador entra para lista suja e fica dois anos sem acesso aos benefícios do Estado, sem fazer empréstimo, e além do mais, fica configurado na sociedade como péssimo empregador”, acrescenta o desembargador Franzé Gomes.
No período analisado também houve aumento de recursos por parte de empregadores - um caso em 2019 e sete em 2021. “Pode-se recorrer ao segundo grau. É a segunda instância de julgamento do mesmo caso de quem não ficou satisfeito com a decisão”, explica o desembargador.
Contexto de vulnerabilidade
Quem atua na exploração da cera de carnaúba no Ceará faz parte de uma rede economicamente importante de exportação ao lado de estados como Rio Grande do Norte, Bahia e Piauí.
O trabalho escravo é o meio mais degradante de exploração do homem pelo homem
“É um serviço muito braçal, o trabalhador tem que tirar a palha da carnaúba e ele faz isso com a vara de cinco a sete metros com a foice na ponta. Depois essa palha é triturada numa máquina que tem que ser limpa, transportada e fica numa água para extração”, lista Franzé Gomes.
Além desse contexto em que o esforço físico está atrelado ao serviço, parte dos trabalhadores são submetidos ao ambiente insalubre - sem fornecimento de água ou de eletricidade, por exemplo - longas jornadas e falta de alimentação. Cenário comum nas fiscalizações realizadas no Estado.
“Antigamente só se encontrava trabalho análogo à escravidão na zona rural, mas hoje já vemos dentro das grandes metrópoles, inclusive, em bairros mais nobres”, destaca Daniel Arêa. Em Fortaleza, por exemplo, os casos estão concentrados no setor da construção civil.
Os trabalhadores resgatados costumam ser trazidos de outros municípios ou estados por mediadores criminosos, conhecidos como gatos. Isso dificulta as denúncias por parte das vítimas. “Não têm relação com aquela comunidade, ou seja, muitas vezes se reprime a pedir ajuda com medo, porque eles não sabem a quem estão pedindo”.
Longe das famílias e sem contato, as vítimas tendem a permanecer sob condições extremas, “porque às vezes o trabalhador até quer pedir ajuda, mas não sabe nem onde encontrar um posto de polícia”, frisa Daniel Arêa.
Em setembro deste ano, nove pessoas foram resgatadas em operação de combate ao trabalho análogo à escravidão em Granja. Todos tinham como função extrair palha da carnaúba, mas em condições degradantes - sem água encanada, energia elétrica, equipamentos de segurança e dividindo espaço com porcos.
Outros 11 trabalhadores foram encontrados em situação semelhante em julho, sem acesso à água potável e em instalações precárias, no bairro Itaperi, em Fortaleza. A ação de fiscalização aconteceu depois de denúncia anônima.
Qual o processo na fiscalização?
As operações de fiscalização relacionadas ao trabalho análogo à escravidão são realizadas pela Superintendência do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Polícia Rodoviária (PRF) ou Federal (PF).
“A irregularidade mais grave que existe, no âmbito trabalhista, é o trabalho análogo ao de escravo. A gente notifica, junto com o Ministério Público, o empregador para resolver o mais rápido possível. Isso é questão de uma semana”, detalha Daniel Arêa. Os resgatados são levados para um alojamento na sequência.
Os trabalhadores resgatados recebem uma guia com três parcelas do seguro desemprego para três meses no valor de um salário mínimo
Na sequência, o empregador é notificado para fazer a rescisão do contrato de trabalho, em média, até três dias da fiscalização. Assim, é feita revisão salarial e dos direitos sonegados como horas extras e descansos semanais. Também são feitos depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e da previdência.
Além das denúncias, os auditores fiscais atuam em setores como o da extração da carnaúba em períodos e locais de maior demanda, como os municípios de Granja e Russas.
“É um trabalho de prevenção e de inteligência também porque a gente não tem a denúncia, mas como, historicamente, são identificados casos de trabalho análogo à escravidão então a gente já faz essa atividade nesse setor”, ressalta Daniel Arêa.
Como denunciar?
As denúncias podem ser feitas por meio do site do Ministério Público do Trabalho. A população pode detalhar o local, período e formas de excessos no contexto de trabalho na plataforma.