Antes de atingir a saúde, Covid-19 já destruiu a economia da favela, avalia Preto Zezé

Dirigente da Cufa relata situação de preocupação nos aglomerados urbanos de Fortaleza a partir do avanço do coronavírus, mas ressalta as ações que estão sendo implementadas e como a periferia vai conseguir sair da pandemia

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(Atualizado às 08:08, em 27 de Maio de 2020)

Desde que a pandemia da Covid-19 passou a se disseminar em Fortaleza, a periferia da Capital tem sido a mais atingida pelos seus efeitos. Segundo a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), a maioria dos óbitos em decorrência da infecção viral ocorreu entre moradores que viviam em bairros com baixo ou muito baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Dado que evidencia, de forma crua - e cruel -, o grande fosso existente entre ricos e pobres em uma das maiores metrópoles do Brasil. É pensando na necessidade da periferia, que sucumbe pela nova doença, violência, desemprego e dificuldade até em receber auxílio, que a Central Única das Favelas (Cufa) vem desenvolvendo atividades para garantir o básico de higiene pessoal e alimentação. Quem está à frente tem nome e sobrenome da favela: Preto Zezé, natural das Quadras, para as periferias do mundo.

Como é ver a sua periferia passando pela pandemia do novo coronavírus?

O que a gente tá vendo é que uma parte da favela tem que manter os serviços essenciais rolando, então essa parte não tem nem como escolher, o cara que limpa a rua, a pessoa que tá no caixa do supermercado, o cara do posto de gasolina. As pessoas não têm como ter direito a se submeter ao isolamento social. Não tem condições de infraestrutura e nem tem amparo econômico, nem alimentar, essa é parte que tá preocupando mais a gente porque são as pessoas que estão indo se expor pra pegar o vírus. Parte dela inclusive nem acredita devido às informações desencontradas que acontecem todo tempo. Isso é um quadro muito preocupante. Por isso, quando surgiu a pandemia, a primeira coisa que a gente fez foi sugerir aos governos e empresários essas frentes de emergência, baseadas em comida, em questões de higiene e limpeza, e a parte de recursos financeiros pra poder a gente fazer uma redução dos impactos dos danos sociais da Covid nas favelas.

Então significa dizer que a situação é bastante preocupante?

Muito. Hoje, a gente tá preocupado com o problema de saúde, mas antes de virar um problema de saúde, a Covid já destruiu toda a economia que tinha na favela. Era o cara que vendia quentinha no lado da areninha, outro que vendia churrasco, outro que tinha uma feirinha de verdura, essa galera toda quebrou, né, cara? Porque o vírus chegou como problema econômico primeiro. Se você olha para as mães, que são as principais atingidas dentro das favelas, que são as mulheres, a questão é mais preocupante ainda porque têm os filhos em casa porque a escola parou e ela não pode sair pra trabalhar, aí não tem como pagar contas.

Como está ocorrendo o debate e a troca de informações com as lideranças comunitárias desses locais?

No nosso caso, é todo dia. Somos uma rede de favela, a gente já estava na favela, não é só uma ação por causa do coronavírus. Pra nós, todo dia amplia a rede de colaboradores, de pessoas que querem somar, querem ajudar. Então, só em Fortaleza são 174 favelas. A gente toma cuidado pra não ter liderança atrelada a aspecto político, mas pessoas que realmente tenham trabalho com aspectos sociais, um perfil mais coletivo e engajado no território. Hoje, além de Fortaleza, tem mais Sobral, Juazeiro do Norte e Maracanaú, que se envolveram também.

Há um problema imenso de disseminação do vírus na Regional I, especialmente no Grande Pirambu, que é uma das maiores favelas do Brasil. A Cufa está atenta a essa realidade?

A gente está atuando nas várias frentes ao mesmo tempo, na frente de alimentos, então nós já entregamos muitas cestas básicas lá, botijão de gás, material de higiene e limpeza. Vamos fazer outra rodada de território, Estamos ampliando a rede de lideranças lá a cada dia. Agora nós entramos com uma campanha publicitária com informações mais acessível às pessoas. Porque, se elas não têm acesso a água e sabão, elas nem vão saber o que é pandemia ou comorbidade. A grande comunicação está sendo feita também de uma maneira que não é de acesso à maioria das pessoas.

Quais são os principais entraves nas periferias para que seja possível seguir o isolamento social proposto pelo governo?

Primeiro que a qualidade dos serviços públicos é precária nesses lugares. Se você olhar, a área da Regional I é um dos menores IDH da cidade. Lá tem moradia precária, questão de infraestrutura, saneamento básico, acesso a equipamentos públicos de saúde e assistência social que, quando comparados ao número de moradores daqueles territórios, são extremamente frágeis. Vamos sugerir para o governador e para o prefeito a criação de comitês de frente de emergência nas favelas, porque essa tecnologia que a Cufa está montando com essa rede pode ser amplificada nas favelas se o governo apoia. Isso vai fazer com que chegue mais rápido, vai empoderar a sociedade, vai fortalecer a opinião popular porque o governo sozinho não consegue.

As políticas de higiene com utilização de álcool em gel são possíveis de serem seguidas nas periferias?

Quando a gente botou o item higiene pessoal como central da nossa campanha de emergência, foi porque 47% das pessoas na periferia nem água regularmente têm. A outra não tem nem sabonete, imagine o álcool em gel. Então, a comunicação pensada do álcool em gel é pensada para quem tem dinheiro pra comprar, a maioria não tem nem sabão direito. Agora vamos fazer uma nova distribuição, em que os kits alimentares vão ter kits de higiene junto. E um livro didático, porque livro também alimenta.

Além da Covid-19, Fortaleza tem um alto número de homicídios nas periferias, com dominação e disputa de territórios por facções criminosas. Durante a pandemia, os índices não cederam. Como também sobreviver à violência?

Se a gente não fortalecer os núcleos comunitários, outras redes vão se criar no local. É fundamental fortalecer esses núcleos no território, que é pra que a violência não seja a única forma de impor ordem ou de movimentar esses lugares. Na medida que eu tenho grupos ativos, fortalecidos, intervindo naquele território, a violência tende a diminuir. A medida que eu não tenho políticas públicas integradas nesse território, a tendência é ver esses índices. E olhe que todo o discurso era de que tinha controlado a violência, e tudo isso estava sob controle... E está provado que não está. Então, é preciso investir em algo mais do que munição, efetivo, viatura e cadeia.

Como é que você espera que as favelas passem por essa pandemia?

Nós vamos aumentar o movimento de autoajuda da favela, tem que se autoajudar, tem que pedir para a galera ir para dentro, tem que limpar as ruas, cuidar dos lixos, dos idosos, proteger os vulneráveis, temos que trabalhar essa consciência coletiva e de ajuda mútua, isso urgente. Isso para reduzir os danos, porque a estrutura social desigual já mostrou que, embora o Meireles tenha grande número de contágio, os óbitos maiores são na Barra do Ceará, no Jangurussu, Vicente Pinzón, essas pessoas que vão perder a vida literalmente porque têm menos condições de se proteger.