'A ascensão do negro incomoda': cearenses lutam diariamente contra a discriminação racial

No Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, conheça cearenses que buscam legitimar ocupação de pessoas negras em espaços adversos a elas.

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Para o ator Edglê Lima e a contadora Silvana Evangelista, corpos negros ainda são alvo de muita violência.
Foto: Arquivos pessoais

Pense que, antes de se preocupar com trabalho, renda, educação e saúde, você precisa se preocupar com a cor da própria pele e em como sair na rua de forma "apresentável", para não ser confundido com criminosos ou desocupados.

Milhares - ou talvez milhões - de cearenses passam por isso todos os dias, incluindo hoje, 3 de julho, marcado no calendário como Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial.

Segundo a Pesquisa Regional por Amostra de Domicílios (Prad-CE) do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), divulgada em janeiro deste ano, 72,5% da população do Estado é negra - 67,4% se considera parda, e 5,1%, preta. O IBGE define a população negra como a soma desses dois grupos.

Para o ator cratense Edglê Lima, de 31 anos, o preconceito só se escancarou em 2011, ao chegar a Fortaleza para estudar. 

“Morava na Aldeota, num prédio super bem localizado, e foi quando um senhor me perguntou no elevador: 'Ah, você é novo por aqui? Trabalha em quê?’.  Essa discussão é resquício da violência da escravidão e ainda é muito triste”, desabafa.

Segundo ele, no Crato, a discriminação era bem mais econômica do que de raça. Por isso, o despertar para a própria identidade começou na adolescência, ao perceber que, em sua sala de aula, num colégio bem conceituado da cidade, só havia duas pessoas negras.

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Porém, o impacto mesmo só veio na Capital. “Quando cheguei aqui, foram diversas situações. Pensei: ‘caramba, então ser negro é acharem que eu não posso morar num bairro nobre’”.

"Comecei a perceber a necessidade de andar por aí com as mãos livres, com um livro ou um celular na mão, senão seria marginalizado. Não foi numa sala de aula que eu refleti, foi na cara".

Quando entrou no mercado profissional da educação, em escolas de teatro, Edglê também passou a pensar em quantos negros ocupam esses lugares - e a tentar mudar a cabeça dos brancos, tornando-os mais conscientes dos próprios privilégios.

Acho que meu corpo é um ato político. Você não entende porque não pode ser quem é. Tentei compreender mais a história do meu país a partir da minha história de vida. Meu sangue é uma mistura de negro, índio, europeu. Tenho irmãos brancos. Mas Fortaleza foi minha referência de um Brasil ainda preso a um passado muito violento, em que o alvo são pessoas negras.

O problema também fere a contadora Silvana Evangelista, 36, desde sempre. Quando criança, ela não participou de discussões sobre discriminação, mas hoje, mais entendida, lembra de situações vexatórias que envolviam seu cabelo, por exemplo.

É um processo de identificação doloroso, embora eu me considere uma pessoa de privilégios porque carrego os ensinamentos do meu pai. Ele é advogado, deu uma estrutura melhor para os filhos, mas é uma exceção. Na vida, enxergamos que não nos querem em lugares superiores, esperam que a gente esteja em condições subalternas.

Depois de adulta, a contadora repara que não passa tanto pelo racismo clássico, pensado e verbalizado. O inimigo agora é o racismo estrutural, como quando reparou nos ares de surpresa ao ocupar cargos de chefia nas empresas onde trabalhou.

“Essa ascensão das pessoas negras super incomoda. É como se o preto estivesse designado para o futebol, para a marginalidade, para o emprego doméstico. Nunca acham que pode ser contador, advogado”.

Do outro lado do Atlântico

Edglê Lima foi aprovado para um mestrado em uma universidade de Lisboa, em Portugal, e morou por um ano na Europa. Foi o suficiente para desfazer a ilusão de que o Velho Continente é acolhedor, inclusivo e horizontal.

Legenda: Edglê em passagem por Paris, no fim de 2019.
Foto: Arquivo pessoal

Lá, reparou que as pessoas têm consciência dos erros, por isso discriminam “com muito mais cautela”. “Achava que o racismo era muito Brasil, mas ele é universal. Se você for mulher negra, sofre pela hipersexualização. Se for um homem negro, acham que você vai tomar o emprego e oferecem subempregos. Não é um romance como dizem”, atesta.

"Teve um dia em que uma mulher parou e tirou uma foto de mim. Perguntei por que. Ela disse que achou bonito, e respondi: ‘não sou atração turística'".

Sonhar com a liberdade

O ator e professor almeja dias em que matérias como essa não sejam mais necessárias. Ou, como ele mesmo diz, que não precisemos mais falar sobre discriminação. 

“Eu quero ser um exemplo para as pessoas da minha sociedade, de verem que, se eu consegui, elas também podem. Minha força me levou a lugares que sonhei e que tentaram me fazer acreditar que não era possível. Precisei quebrar muitos muros, abrir muitos cadeados, mas tento sempre estabelecer diálogo", reforça Edglê.

A contadora Silvana Evangelista também quer menos portões, menos cadeados e menos correntes.

"Meu maior sonho é que as pessoas pretas possam estar onde elas quiserem e viverem livres", deseja.

Instrumentos de luta

Para lutar contra a discriminação e o racismo, é preciso conhecê-los e reconhecê-los. Segundo a cartilha “Ceará Sem Racismo”, da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (Ceppir), da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), o preconceito tem várias manifestações:

  • A discriminação racial ou crime de ódio ocorre em situações em que pessoas são difamadas, violentadas ou têm acesso a algum serviço ou espaço negado por causa da cor ou origem étnica;
  • O racismo institucional coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos em desvantagem no acesso a benefícios ofertados pelo Estado ou outras organizações;
  • O racismo estrutural é manifestado através de práticas conscientes ou inconscientes que determinam prejuízos ou benefícios para indivíduos ou grupos racialmente definidos.

Pela Constituição Federal, a prática de racismo é crime inafiançável e imprescritível. Denúncias podem ser feitas ao Disque 100 de Direitos Humanos ou pelo número 155, da Ouvidoria Estadual dos Direitos Humanos do Ceará.

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Condutas discriminatórias estão descritas na Lei Federal nº 7.716/1989, conhecida como Lei Caó, que definiu como crime o ato de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. 

As penas previstas podem chegar até 5 anos de reclusão e variam de acordo com o tipo de conduta, que pode ser:

  • Impedir ou dificultar o acesso ou promoção funcional de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da administração pública;
  • Negar ou dificultar emprego em empresa privada;
  • Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, estabelecimento de ensino, bares, restaurantes, clubes e salões de beleza, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador;
  • Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escadas de acesso.
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