Kamile Moreira Castro é juíza titular do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Ceará (TRE-CE). É a primeira mulher, desde a insituição da corte. Seu exercício no cargo, no biênio 2020/2022, é um grande marco para advocacia, de onde é originária. No TRE-CE, Kamile Castro ainda desempenha o cargo de ouvidora substituta. Ela preside o Colégio de Ouvidores da Justiça Eleitoral (Coje).
Nascida em Fortaleza é especialista em Direito Processual Penal (Unifor) e em Direito e Processo Eleitoral (ESMEC e PUC/MINAS); mestre em Ciências Políticas, pela Universidade de Lisboa (ISCSP), e em Direito, pela Uninove/SP; e doutoranda em Direito pela UFPE. É ainda especialista em Direito e Processo Eleitoral pela ESMEC-PUC/MG.
A jurista também é professora, membro da Junta Promotora da Conferência Americana de Organismos Eleitorais Subnacionais pela Transparência Eleitoral (CAOESTE) e membro Consultora da Comissão Especial de Estudo da Reforma Eleitoral da OAB Federal.
Na entrevista desta semana do Dona de Si, Kamile Moreira Castro fala de sua trajetória, sua visão dos novos rumos sobre o futuro das eleições e as eleições do futuro.
Quem é Kamile Castro?
“Quem dizem os homens que eu sou?” (Em Marcos 8,27-38). Eu, particularmente, sou alguém que gosta de viajar, de gastronomia, de vinhos e de esportes. Solteira, tenho cactos e estou sempre em um estado de eterno aprendizado. Aliás, dizem, que mulheres potentes são ao mesmo tempo fascinantes e assustadoras (...), ultimamente só busco paz! Se for falar mal de mim, porém, me chame novamente, porque sei coisas terríveis a meu respeito (risos)!
Como foi a sua trajetória profissional até ser juíza do TRE?
Ainda na faculdade fiz estágios no Fórum Clóvis Belvilaqua e no extinto TCM/CE. Sempre advoguei, essencialmente, na área de direito público e, em especial, no direito administrativo e eleitoral. Atuei fazendo parcerias com grandes advogados e advogadas e escritórios. Tive, por pouco período, o meu próprio, quando tive fortemente vontade de entrar na vida acadêmica. Após ingresso no TRE/CE, com mais tempo, foi que comecei o mestrado em Direito e em Ciências Políticas e, mês passado, o Doutorado em Direito. Com isso, passei a ministrar aulas, palestras, coordenar livros e eventos jurídicos locais, nacionais e internacionais. Recentemente tive a oportunidade de ser Observadora Eleitoral Internacional.
Como começou a afinidade com o direito eleitoral, dentre tantas vertentes na área?
Quando estagiava na Procuradoria de Contas do TCM/CE e, logo ao me formar, quando tive como as primeiras causas. A inovação e celeridade são uma marca da Justiça Eleitoral brasileira. É uma área apaixonante. Não se trata unicamente de eleições, mas de Estado, sociedade, poder, cidadania, povo.
Qual é a sua maior inspiração na carreira?
Meus pais, embora não sejam da área jurídica. São eles meus grandes incentivadores e meus exemplos de estudos e garra. Nunca mediram esforços para me proporcionar os melhores estudos. Todas as mulheres que ocupam espaços e vencem também me inspiram!
Com uma rotina agitada, o que gosta de fazer no tempo livre?
Quem disse que tenho uma rotina agitada? Gosto de dormir e de unir no mesmo lugar: sorrisos.
Quais desafios enfrenta no meio que é predominantemente masculino?
Estar sendo sempre observada e testada, às vezes confrontada, e sabemos que é um confronto diferente, seja por ser mulher, seja por ser mais jovem. Uma discussão com frequência suscitada é acerca da maneira como a participação das mulheres no Poder Judiciário é capaz de influenciar na própria carreira, por um lado, e na administração da Justiça, de outra parte. Precisamos entender que, além de isonomia (todos iguais perante a lei), existe um conceito menos conhecido que é do isegoria, oriundo da antiga democracia grega, que refere-se à igualdade no direito de falar e ser ouvido. Ao largo da História do mundo, e da brasileira, também, viu-se que as mulheres tiveram que conquistar os direitos que, agora, já estão plasmados na letra da lei, mas que precisa de mecanismos positivos de aplicação. Assim, entende-se que a desigualdade, de fato, deve ser combatida por uma discriminação de direito, o que significa, na prática, que a adoção deste tipo de medidas visa a corrigir os efeitos negativos decorrentes da desigualdade material. Repare-se, entretanto, que estas correções são, ao fim e ao cabo, uma afirmação e ampliação da cidadania, já que sem esta as sociedades democráticas definham e morrem.
Na política, como vê a participação das mulheres?
O panorama da participação da mulher na vida pública, em geral, e na política, em particular, e nas zonas de “administração do Poder”, em especial, é de uma nítida evolução, mas, muito longe ainda, da plena igualdade de acesso que os documentos oficiais internacionais pugnam e que a Constituição de 1988 proclama. Para que a cidadania das mulheres seja efetiva, e não apenas letras em papel, é necessário começar por uma reconfiguração de suas atribuições na sociedade, onde se aumente a comparência feminina na vida econômica, social e política, por exemplo. Já em 1890, Hubertine Auclert dizia que o direito político é, para a mulher, a chave que lhe dará todos os outros, sublinhando, então, que seria com amparo na intervenção política e dos seus direitos políticos que os outros seriam assegurados.
Alguns investigadores se referem à existência de um teto de vidro - glass ceiling - que seria um dos fatores impedientes para a progressão das mulheres na carreira em geral. De fato, as barreiras impostas começam por serem comuns às dos homens, mas, posteriormente, aparecem outros obstáculos paredistas específicos, impeditivos de que se levantem quando querem chegar a patamares mais elevados das suas carreiras: rendimentos desiguais, tempo mais limitado pela sua vida pessoal, estereótipos sociais etc. Os telhados de vidro seriam mais um destes impedimentos específicos.
O que pensa sobre o futuro das eleições e as eleições do futuro, tema do Congresso sobre Direito Eleitoral (Concede) que está organizando neste ano?
Que ainda haja eleições! Gostaria de registrar que o Concede nasceu pequeno e do desejo comum entre colegas de profissão de, apenas, proporcionar pesquisa cientifica e debates de qualidades entre profissionais do Direito e áreas interdisciplinares, por diversos vieses, de forma acessível. Isso ainda é o Concede. Mudamos parte do time a cada ano para dar oportunidade a novos talentos, inclusive. Esse ano, quanto ao tema geral, penso que a tecnologia é um caminho sem volta e a cada dia o direto usará mais e mais a informática, seja em busca de economia e celeridade, segurança e acessibilidade. Penso ainda em menos judicialização e mais civilização. Mais debates construtivos e menos intolerância. Um futuro no qual as regras do jogo sejam cumpridas e a igualdade assegurada. A democracia é um conflito delimitado. Não é consenso, mas exige consenso quanto a certos valores e princípios. Ah, gostaria de ver as pessoas voltarem a ter encantamento e engajamento na política.
É ativa nas redes sociais? Como vê essa interação digital?
Tento ser. Busco notícias em um só lugar e divulgo fatos acadêmicos. Como disse, estou em constante aprendizado. Gosto de manual, mas quero entender o porquê, conhecer as razões.
Como é ser ouvidora eleitoral e como trata com os segmentos sociais vulnerabilizados em seus direitos?
A ouvidoria é gratificante. Tratar com pessoas é sempre um exercício positivo. Saber que o que fazemos não é favor, é um direito da sociedade. Os setores de decisão precisam da participação do eleitor para buscar eficiência. Damos voz e ouvidos o usuário do serviço público. O usuário utilizar dos serviços da ouvidoria é, acima de tudo, participação e controle social. A comunicação inclusiva é uma realidade da diversidade num mundo global e cabe a administração e serviços públicos adotar práticas linguísticas, fomentá-las e consolidá-las. Isso é promoção da igualdade.
Como acredita que serão as novas formas de votar após a pandemia?
Apenas com o uso cada vez maior da tecnologia.
Como vê o papel da mulher em todo esse contexto local e mundial?
Entender o papel das mulheres na sociedade, antes de tudo, conforma ter uma outra noção de poder. Passar de uma noção de poder como algo que se possui e se quer, a todo custo, manter, para uma noção mais relacional de poder. O gap principal a ultrapassar, passa, pois, no aspecto das mulheres no Brasil, por três vertentes básicas: a concordância entre a lei escrita e a sua prática; maior inclusão participativa feminina na vida pública; e mudança de cultura e de mentalidades na sociedade. Muito se tem a fazer, portanto. Ao largo da história do Brasil, encontram-se diversos rastros da afirmação das mulheres na vida pública, pequenas conquistas que, quando enunciadas, não demonstram a importância de tais desideratos terem sido alcançados, nem, muito menos, as lutas e sacrifícios que, por vezes, lhes deram origem.
Acredita que as estratégias que as redes sociais vêm adotando para garantir a eficiência e a segurança nas eleições são verdadeiramente eficientes?
Sim, na medida que atuam em parceria e com transparência. Elas podem contribuir e devem contribuir com a celeridade das informações, permitindo ao judiciário realizar uma maior fiscalização e combate aos ilícitos. Devem ser neutras, porém. E é indispensável uma definição dos papeis na circulação de conteúdo, porque as plataformas e provedores tem um modelo de negócio, que muitas vezes é utilizado para encontrar o melhor celular que atenda nossas necessidades, melhores preços de passagens e até o amor perfeito. Interferem, entretanto, diretamente na forma como a informação e a desinformação circulam e, assim, impactam diretamente no dano causado pelos perfis. Assim, o conteúdo publicado por um terceiro, de forma orgânica ou paga, assim como a matemática do aplicativo que atua para ampliar ou reduzir o alcance do que foi publicado, geram responsabilidades individuais.
O que faz Kamile Castro sentir-se dona de si?
Os outros! E saber que paz custa caro!