Será que não mensurei corretamente o impacto do nosso confinamento? Seria tudo isso reflexo do momento distópico que estamos vivendo? Honestamente, não sei. Busco uma resposta, mas não consigo identificar quando um reality show deixou de ocupar o lugar de entretenimento para virar assunto de terapia e pauta entre psicólogos e sociólogos.
Já são mais de 20 anos de edição, o programa em si já foi exaustivamente discutido. O formato do reality não é nada novo, nos remete ao chamado panóptico – um modelo de penitenciária ideal, em que sua arquitetura possibilita com que todos os presos sejam observados em suas celas em tempo integral, sem conseguirem enxergar quem os observa. Essa era a tecnologia utilizada antes da hipervigilância por meio de câmeras de nossos tempos.
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Talvez, o tempero desta nova edição, que vem tomando espaço nas cabeças das pessoas e em debates públicos, seja a seleção criteriosa dos participantes. Palmas para o responsável pelo recrutamento, encheu a casa de clichês da hipermodernidade e bingo! Funcionou! Sim, a casa está repleta de clichês de nossos tempos líquidos que vemos aos montes em Instagram: há a militante hipócrita; a psicóloga que gosta de fazer “palestrinha”, sem se dar conta que é massa de manobra da militante-mor; não poderia faltar a nordestina humilhada que traça agora a trajetória de rejeitada à heroína; há o oprimido; o opressor; o que cativa o público falando “na cara” e dizendo o que o público queria gritar a certos participantes; há o que não sabe que é influenciável, o homem que visivelmente sem desejo, mas preso em sua masculinidade não pode negar ficar com uma mulher que o deseja, cede e se dá mal...
Enfim, os clichês instagramáveis estão ali, confinados ao mesmo tempo. A diferença é que agora carecemos da “proteção do algoritmo”, fornecida na rede social virtual, que nos mostra somente o que gostamos e nos convém. A casa mais vigiada do Brasil nos mostra o que o algoritmo tentou nos fazer esquecer: nossa própria incoerência.
A luz refletida pelo espelho da televisão parece ter sido tão forte que chegou a nos machucar, vimos o que rejeitamos e, principalmente, nos vimos. O que era mero entretenimento passou a ser visto como experimento social. É ingênuo quem pensa que os participantes que são a principal parte do experimento. Nós somos os atores fundamentais desse experimento social.
O que o público sentiu ao se ver representado na tela? Como reagir ao olharmos a tela e encontrarmos nossas incoerências e absurdos? Como ficou a pessoa que levanta bandeiras de militância, sinalizando virtudes o tempo inteiro em redes sociais, ao se deparar que algumas militâncias são sobre bandeiras e lacração e não sobre valores e reflexão? Como ficou aquele que julgou rapidamente a atriz, na mídia desde criança, cheia de privilégios, branca e loira, se mostrando, por ora, uma das mais coerentes? Como ficou não nos sentirmos representados por quem canta representatividade?
Assim como todos nós, os participantes da casa são vulneráveis aos chamados vieses inconscientes, como o viés de confirmação. O viés de confirmação diz, de maneira bem resumida, de nossa tendência a olhar o mundo de maneira a confirmar o que já achamos, a confirmar nossas próprias crenças. Por exemplo, no clássico Otelo, de Shakespeare, Otelo achava que sua amada havia o traído, a partir daí, todos os atos dela passam a ser interpretados por ele de modo a confirmar a traição sofrida.
Alguns participantes do reality já eram conhecidos na mídia, já levantavam suas bandeiras. Me questiona se isso, esse conhecimento prévio de alguns, faz com que as pessoas estejam muito apegadas a seus vieses de confirmação. Será mesmo que se Karol Conká fosse uma anônima, os confinados já não teriam enxergado melhor todo o seu potencial opressor? Será que o fio que ainda a une aos outros não é mera fabricação mental? Observo alguns participantes buscando confirmar o que os atos na casa não mostram, que Conká é um mulherão. Talvez tendam a pensar isso por conhecimento prévio de suas letras, mas, certamente, não pela realidade atual: seus comportamentos, reprováveis, expostos 24 horas por dia.
O que sentimos ao testemunharmos que esse viés de confirmação pode nos cegar? Como ficamos ao ver uma mulher tão forte, lésbica, com estudos e com um discurso supostamente tão bonito, como Lumena, se transformar em marionete de Karol Conká, cega aos seus defeitos? Na edição de ontem Lumena afirmou ter orgulho de ser “influenciável” por "mamacita", a que verbalizou, com todas as letras, que iria “torturar” um participante. Que decepção, Lumena!
Partilhamos a mesma profissão, mas certamente nos desencontramos na obediência ao lacre, na aceitação cega de nossos vieses de confirmação. Talvez você tenha esquecido que nosso Código de Ética aponta claramente que nós, psicólogos, devemos contribuir para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. E é preciso ter os olhos bem abertos, muitas vezes a opressão parte de quem admiramos. Talvez o seu problema, como o de tantos internautas, seja um excesso de obediência travestido de militância.
Porém, não nos iludamos, talvez, não sejamos tão mais nobres que ela. Provavelmente, se estivéssemos ali dentro, correríamos sérios riscos de reproduzir um comportamento semelhante. Afinal, é mais que comprovado cientificamente: tendemos a obedecer a figuras de autoridade. Vários experimentos já foram feitos sobre isso, como o experimento de Milgram, realizado pela Universidade de Yale, que tinha o objetivo de entender como os participantes observados respondiam às ordens de autoridades em um contexto em que eram ordenados a gerar dor ao outro. Explico: No experimento, o participante teria que dar choques em outra pessoa (o participante desconhecia que se tratava de um ator).
Os choques variavam de 15 a 450 volts. A cada choque que o participante dava, o ator simulava se contorcer de dor, porém, o pesquisador orientava o participante a continuar os choques, mesmo vendo o estado degradante do outro. Todos os participantes chegaram a dar 300 volts de choque, e 65% chegaram ao nível máximo, pela pura obediência ao pesquisador, ainda que vissem o mal que estavam fazendo. Os resultados da pesquisa nos mostram que atos cruéis nem sempre partem de pessoas necessariamente cruéis, mas de pessoas obedientes. A propósito, lembram do julgamento de Adolf Eichman? Ele foi um dos grandes responsáveis pelo holocausto e morte de milhões de judeus durante o nazismo e, em sua defesa, alegou apenas “obedecer ordens”...
Acontece que nem sempre as autoridades vão usar jalecos ou fardas, muitas vezes a autoridade usa rimas e fama. Tantas vezes não é a uma ordem explícita que nos sentimos coagidos a obedecer, mas a alguma bandeira, alguma militância, ao lacre do momento. Me parece que em determinada ala do campo progressista há um imperativo de sinalização de virtudes. É necessário sinalizar o tempo inteiro suas virtudes, sua nota de repúdio e seu cancelamento a quem não tem tantas virtudes. E nessa lógica, a associação a outros lacradores também é imperiosa.
Sim, desconfie de pessoas obedientes. A obediência cega é destruidora, anula senso crítico, transforma burocratas em assassinos, militantes em militares opressores. (Para quem pulou a disciplina de interpretação de textos na vida, não tenho NADA contra militares, meu amado avô era militar).
As pautas já são incontáveis nesse reality. Já tivemos episódios que remetem à xenofobia, em que uma participante afirma ser de Curitiba como sinônimo de ser educada. Registro aqui meu iiiiieeeeiii – patrimônio cultural cearense, nossa vaia.
Presenciamos bullying no programa. Dizemos que há bullying quando há um certo abuso de uma situação de poder (lembrando que popularidade também é um tipo de poder) para causar um dano deliberado em alguém. Não foi isso que o participante Lucas sofreu? Excluído, de escanteio, proibido até de sentar à mesa para a refeição. Em Escolas, quando vamos trabalhar bullying, de praxe, temos uma abordagem: não focamos tanto a fala no agressor – afinal, o nível de imaturidade ou crueldade de seus atos demonstram que, provavelmente, ele não está preparado para enxergar todos os seus erros. Também buscamos não focar tanto na vítima do bullying, pois, muitas vezes, ela está tão fragilizada diante de tudo que passa, que seu poder de expressão e transformação é diminuído, muitas vezes ela só quer fugir da situação, sem encarar – alguma semelhança com a desistência do participante Lucas? Via de regra, focamos na plateia do bullying. Sim, a plateia é a peça primordial. Trabalhamos para que eles não aplaudam certos comportamentos e assim, comece, gradativamente, uma inibição ao bullying. Acontece que a plateia, muitas vezes, fica cega diante da autoridade, é obediente, como vimos.
Para muitos, o ponto ápice do programa, até agora, foi a saída de Lucas, que após uma série de atos inconvenientes, mas contornáveis, foi cancelado dentro da casa, asfixiado. Seu beijo em outro homem gerou controversas, sua bissexualidade foi questionada, dita como estratégia de jogo – me pergunto, com que direito afirmaram isso? Lucas saiu vencedor por saber a hora certa de desistir, porque escutou os alertas de sua saúde mental.
Para mim, o pior foi a deturpação de valores e bandeiras ao longo das últimas semanas. Os que gostam de teoria da conspiração chegaram a cogitar que tudo faria parte de um projeto da direita para avergonhar à esquerda. A autocrítica ainda é muito difícil para alguns...
É difícil assumir que transformaram o tal “lugar de fala” em um lugar de “cala” - qualquer mínimo desvio merece ser calado. É difícil assumir que quem canta à liberdade, oprime. É difícil assumir que há um viés de confirmação sobre militantes serem pessoas boas e engajadas socialmente, enquanto o que seus atos nos apontam atrocidades.
As pessoas esquecem que o contrário de uma coisa, ainda é a própria coisa. Uma luva ao avesso, permanece luva. O que esse experimento social tem nos mostrado é que os opostos guardam mais semelhanças entre si do que se pensa. Assistir a tudo isso acendeu em mim uma solidão muito específica que chamo “solidão do meio-termo”. Ela é subproduto de uma recusa em me enquadrar 100% em polaridades. Assumo que ela, muitas vezes, vem em forma de um calar. São tempos difíceis para pensar fora dos extremos. Pessoas são atacadas nas redes sociais por simplesmente não se enquadrarem na polarização esquerda-direita - como se existisse um código de conduta moral obrigatório. Pessoas são “canceladas” caso não sinalizem suas virtudes e bandeiras. ⠀⠀
Esta cultura do cancelamento, com base num suposto “politicamente correto”, impede diálogos, engessa condutas e nos deixa tolhidos da nossa maneira de ser. Quem nunca pensou duas vezes antes de postar algo? Seria esse pensar um refletir sobre a própria ação ou um puro medo da reação do outro? Creio que o cancelamento ao que não é 100% progressista ou 100% conservador não visa ao diálogo e à reflexão, mas sim à obliteração permanente de alguém. Impossível não lembrar de Paulo Freire “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor.”
Há alguns meses, mais de 150 intelectuais, como Chomsky e Margaret Atwood assinaram uma carta sobre o “direito de discordar”, sobre o direito de não estar alinhado 100% com as polaridades. De algum modo, me senti acolhida. Por aqui, sigo na solidão do meio-termo e correndo sérios riscos de ser cancelada por causa disso, mas tudo bem, a terapia está em dia, meus valores e desobediência também. Sigamos!
Maria Camila Moura
Psicóloga, Mestre em Psicologia e Doutoranda em Saúde Pública.
CRP: 11/09333