‘Meninas Digitais’: estudante atua no interior do Ceará para incluir mulheres na área da computação

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“No curso técnico era meio a meio a quantidade de homens e mulheres. Mas, quando eu vim para a graduação, não era uma questão que eu pensava. Quando entrei na sala de aula (da universidade) eu vi que a quantidade era discrepante. Aí é aquela coisa meio intimidadora. Você está num ambiente majoritariamente masculino, em que muitas coisas que você fala, sente não são bem recebidas”. A sensação é descrita por Sofia Desidério, universitária, egressa de escola pública estadual e moradora do interior do Ceará.

Ela, que fez a opção não tão frequente entre as mulheres de enveredar pela área da computação, ao acessar o ensino superior via a possibilidade de “devolver um pouco do que aprendeu” e hoje estimula meninas de escolas públicas a ingressarem nesse campo do conhecimento: com o projeto “Meninas Digitais do Vale”, que estimula a participação de meninas e mulheres na área da Tecnologia da Informação (TI). 

A iniciativa integra a extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC) e é por meio dela que Sofia tem atuado para ajudar outras meninas, advindas de escolas públicas. A iniciativa da UFC, campus de Russas, deriva do Programa Meninas Digitais, criado em 2011 sob a coordenação da Secretaria Regional da Sociedade Brasileira de Computação (SBC) em Mato Grosso. Na UFC, existe desde 2018. 

O Diário do Nordeste publica em 2024 a terceira edição do projeto Terra de Sabidos e conta “histórias de vai e volta”. São experiências de alunos egressos de escolas públicas estaduais do Ceará que, ao saírem desse espaço, e ingressarem em novos campos de estudo, como o ensino superior, retornaram às suas regiões de origem, territórios, bairros, desenvolvendo alguma iniciativa de impacto social positivo e compartilhando benefícios. 

Ex-aluna de escola pública tanto no fundamental quanto no ensino médio, Sofia experimentou nesta última etapa a conexão entre o aprendizado das disciplinas convencionais alinhadas à formação técnica. Na Escola de Ensino Profissionalizante Professora Maria Célia Pinheiro Falcão, em Pereiro, cidade do Cariri cearense, enquanto avançava no 1º, 2º e 3º ano, fazia também o curso de Informática. Ela concluiu em 2021. 

Nasceram ali desejos, inquietações e realizações que se perpetuam ainda hoje, quando a formatura já “bate à porta”.  

Sofia, que junto à família já percorreu diversas cidades do Ceará e de fora dele, vivendo, em certa medida, como “andarilhos”, explica que essa itinerância é justificada pelas demandas de trabalhos e oportunidades vislumbradas pelos pais para garantir a sobrevivência. Essa vivência faz com que “fincar raízes” e olhar para um território como “seu” seja um desafio, mas ela expressa que o Vale do Jaguaribe é hoje esse ponto de referência.

Há alguns anos, a família fixou moradia em Limoeiro do Norte, uma das 15 cidades dessa região semiárida do Ceará. É de lá que Sofia parte todos os dias por volta de 7h20 rumo à Russas, cidade vizinha que abriga o campus da Universidade Federal do Ceará (UFC) onde ela cursa Engenharia de Software. Retorna às 17h30.
 
Ainda no primeiro semestre da universidade, em 2022, ela se engajou em uma iniciativa que busca justamente alterar esse quadro e fazer com que mais meninas e mulheres não só entrem na área, mas também tenham condições de permanecer.  

Meninas Digitais do Vale

O objetivo do projeto reforça Sofia: “é fomentar a participação feminina na área de computação, tanto fomentar quanto também reter, porque tem muitas meninas que entram e acabam desistindo no meio do curso. Então, além de levar a computação para meninas do ensino fundamental e médio, a gente também quer que elas entrem na graduação, concursos, cursos e entrem no mercado de trabalho”. 

Na própria UFC, por exemplo, conforme o Censo da Educação Superior de 2023 do MEC, nos cursos da área da computação e da tecnologia da informação e comunicação, em 2013, as mulheres representavam 19% das discentes. Em 2023, essa proporção chegou a 27%. 

O Meninas Digitais tem inúmeros projetos parceiros espalhados no Brasil. Na UFC no Vale do Jaguaribe, são três frentes de atuação: a extensão, as mídias sociais e a mentoria. 

“Participei inicialmente do de extensão, que é fazer ações fora do campus. No ensino fundamental e médio eu participava das oficinas de arduino para ensinar programação de forma mais lúdica. Fazer com que os alunos consigam enxergar o que eles estavam programando”.
Sofia Desidério
Universitária e egressa de escola pública

A professora dos cursos de Engenharia de Software e Ciência da Computação na Universidade Federal do Ceará (UFC), Campus Russas, e coordenadora do Meninas Digitais do Vale, Anna Beatriz Marques, reitera que o projeto tem o propósito de atrair mais meninas e mulheres para a área da tecnologia da informação e para isso adota estratégias de divulgação dos cursos da área de computação. 

É uma forma, reforça, de fazer com que as meninas das escolas de educação básica “possam enxergar a computação como uma possibilidade de carreira” e isso “desmistificando a ideia de que a área da computação é uma área masculina que as mulheres não podem obter ascensão profissional ou se desenvolver nessa área”. 

Para ela, a falta de informação faz com que a percepção sobre quem pode ocupar essas áreas seja distorcida.  Nas escolas, o projeto busca “mostrar a área da computação de maneira simples e prática, em ações de curta duração”.

Sobre Sofia, a professora destaca “proativa, criativa, tem espírito de liderança, se inspira e se motiva a realizar atividades inovadoras e também inspira as alunas do nosso projeto a darem o melhor de si”. 

“Ela já vem dando esse retorno sobre o conhecimento que ela vem adquirindo na universidade federal para a comunidade quando ela conduz essas oficinas de maneira voluntária, passando esse conhecimento, essa inspiração e essa motivação para outras meninas considerarem a área de tecnologia como uma possibilidade de carreira. A Sofia é um grande presente para o nosso projeto”. 
Anna Beatriz Marques
Coordenadora do Meninas Digitais do Vale

Alunas aprendem linguagem de programação 

O projeto de extensão ganha materialidade, sobretudo, nas escolas do município de Russas. Organizadas, professoras universitárias e alunas que atuam no Meninas Digitais do Vale buscam as escolas da cidade para ofertar a formação cuja participação não é restrita às meninas, mas o foco tem essa prioridade.  

“No fundamental, normalmente tem a oficina de computação desplugada, que é uma coisa não tão ligada ao computador, pois com criança a gente tenta tornar mais lúdico. Dei oficinas para o ensino médio que aí os alunos já gostam mais de computador, já sabem mais”, ressalta Sofia. 

Nessa formação são utilizados arduínos (placa de prototipagem eletrônica de código aberto), “que a gente consegue programar para ela fazer algumas coisas, de forma bem simplificada”, explica Sofia. 

Assim, as estudantes aprendem, por exemplo, a utilizar linguagem de programação para gerar comandos conectados às placas que garantem funcionalidade nas ações desenvolvidas. “A partir disso, elas conseguem programar no computador e visualizar a coisa acontecendo na placa de arduíno”, acrescenta. 

Ao final dessas oficinas são aplicados questionários para registrar a percepção de quem participou da formação.

“A gente não restringe a entrada de homens, porém, a maioria das meninas que participaram relataram que viam a computação agora como uma oportunidade de universidade, de trabalho e relataram também que não nunca tinham ouvido falar. Então, elas nunca ouviram falar, tiveram esse primeiro contato e a partir desse momento chegaram a possibilidade de fazer uma graduação, de entrar na universidade, fazer algum curso”, diz, e complementa: “o problema é que a informação, às vezes, nem chega”. 

Compreensão na universidade

Na universidade, Sofia relata que há promoção de ações que discutem essas relações e a necessidade de inclusão das mulheres nesta área do conhecimento. Ela ressalta que é perceptível a presença de poucas mulheres no corpo docente e na gestão. 

“Diretor, vice-diretor, todos são homens. Agora que a gente tem a nossa vice-reitora, que é a Diana (Azevedo). Mas é assim, é até meio estranho quando, por exemplo, é aniversário do campus e você vai ver o palco, só tem homem e a Diana. Então você percebe que ainda falta acessar esses espaços”, aponta. 

Para o futuro, Sofia deseja justamente ser professora universitária. “Quero seguir os passos da carreira acadêmica. Então, continuando o mestrado no doutorado, fazer um concurso, trabalhar na universidade porque eu gosto de estar nesse espaço. Gosto de ter também essa liberdade de poder trazer coisas novas. Poder estudar coisas novas, pesquisar”.