Enfermeiro que estudou em escola pública do CE retorna a Icó e ajuda idosos a ‘cursarem’ a universidade

(Atualizado às 17:55)

Nascer na zona rural no interior do Ceará. Conviver com as altas temperaturas em um distrito distante dos grandes centros urbanos. Ver o pai agricultor e a mãe, dona de casa e vendedora autônoma,  “moverem mundos” para sustentar os filhos. Ir para a escola pública, ingressar no ensino superior, se tornar enfermeiro. Avançar rumo à pós-graduação. Essa é uma parte da história do cearense Rafael Bezerra Duarte, natural de Icó, que tem “chegado lá”, nos “lugares” com os quais sempre sonhou. 

E ao fazer esse movimento, levou consigo a própria comunidade. Ao avançar nas conquistas, Rafael tem “devolvido” à cidade natal ações de impacto social positivo

Um dos públicos beneficiados pelas iniciativas voluntárias de Rafael são as pessoas acima dos 55 anos, grande parte mulheres idosas que, justamente nesse período da vida, puderam “entrar na faculdade”. Não no sentido convencional, mas através de um projeto de extensão gratuito, cujo Rafael é um dos idealizadores, vinculado ao Centro Universitário Vale do Salgado (UniVS), instituição privada de ensino superior em Icó. 

Foto: Davi Rocha

O Diário do Nordeste publica em 2024 a terceira edição do projeto Terra de Sabidos e conta “histórias de vai e volta”. São experiências de alunos egressos de escolas públicas estaduais do Ceará que, ao saírem desse espaço, e ingressarem em novos campos de estudo, como o ensino superior, retornaram às suas regiões de origem, territórios, bairros, desenvolvendo alguma iniciativa de impacto social positivo e compartilhando benefícios.

Na ação, os idosos “cursam a faculdade” ao passar dois anos tendo aula 2 vezes por semana com 4 disciplinas das mais diversas áreas do conhecimento, por semestre. Saem de lá formados, com direito à colação de grau e diploma, no programa intitulado “Universidade para a melhor idade”. 

Como é a formação dos idosos?

Desde que a ideia do enfermeiro “saiu do papel”, uma turma de idosos iniciou a formação em 2018 - foi atravessada pela pandemia de Covid - e concluiu em 2023. Outra está em pleno processo. A cada turma são disponibilizadas 60 vagas. As aulas ocorrem às quartas e quintas-feiras. 

O retorno quanto a satisfação é demonstrado pela primeira turma que já demandou a oferta de uma “pós-graduação”. Embasado na própria trajetória, Rafael sabe que, muitas vezes, o caminho para a realização pessoal, o crescimento e a mudanças de vida vêm via educação.

É isso que reafirma para si e para engajar outros tantos icoenses que queiram contribuir na realização do programa. “Um dos principais públicos que eu sempre trabalhei desde a graduação foi o público idoso”, completa. 

Na universidade, Rafael, que é egresso de escola pública, já encabeçava iniciativas voltadas à população idosa. Uma delas a “adoção de idosos” no qual, estudantes da área da saúde percorriam determinados territórios de Icó acompanhando agentes sanitários de saúde no trabalho e registravam os idosos que “tinham essa demanda”. 

Como era adotar? A gente adotava o idoso, fazia visita quinzenal, fazia um prontuário que servia de dados para a unidade (básica de saúde) e esses idosos eram recolhidos uma vez por mês para ter uma aula com outro profissional. Então, eles tinham uma troca de experiência. E foi daí que surgiu o Universidade para a melhor idade.  
Rafael Bezerra Duarte
Enfermeiro e doutorando em Saúde Coletiva na Uece

Após formado, Rafael retornou à universidade onde estudou e fez uma seleção para ser professor.

“De início eu comecei a trabalhar nos cursos de saúde, era professor dos cursos de Enfermagem, Fisioterapia, Educação Física, Psicologia. Eu dava disciplina básica, histologia, embriologia, psicologia e mais na frente eu passei para uma seleção para ser preceptor da disciplina de saúde do idoso. Então eu voltei de novo para a unidade (básica de saúde), acompanhando os alunos. Só que agora em saúde do idoso”, explica. 

Nesse contexto, a universidade acolheu a ideia de Rafael e criou o “Universidade para melhor idade”, com o apoio de uma enfermeira, coordenadora de Enfermagem à época, professora Kerma Márcia.

No processo, os idosos têm aulas de disciplinas de diferentes cursos de graduação, como: 

  • Fisioterapia
  • Direito
  • Serviço Social
  • Administração
  • Ciências Contábeis
  • Enfermagem e
  • Medicina Veterinária 

Logo, os alunos têm aulas, por exemplo, de direitos da pessoa idosa; cuidados com relação a risco de quedas e empreendedorismo para cuidar do próprio dinheiro, alimentação, música. “O objetivo do programa é fazer com que os idosos se sintam participativos, ativos dentro da comunidade e que eles consigam também dar um retorno para a sua própria família ou para a comunidade”, destaca Rafael. 

A dona de casa Josineide Bandeira é uma das alunas. Ela, que tem 55 anos é mãe de 3 filhos adultos, que já saíram de casa, e diz: “não sou idosa, mas estou no caminho e vi a oportunidade de participar e vim”.

Ela está matriculada na segunda turma do curso e conta que a mãe, idosa de 85 anos, integrou o primeiro grupo. “Minha mãe gostou demais e estou aqui porque para a gente é maravilhoso. Vivo só em casa e estar com as outras pessoas é bom demais”, destaca. 

Na formação escolar, Josineide relata que cursou até o 1º ano do Ensino Médio. No grupo, conta, há quem more bem pertinho e também aquelas que vêm de áreas rurais bem distantes da sede. 

A gente sempre pede que o projeto não se acabe, para dar oportunidades para muitas pessoas. A gente fica em casa sozinho, vem pensamento, vem coisas ruins. Aqui a gente se diverte, aprende muitas coisas. É o momento de olhar para mim de novo.
Josineide Bandeira
Dona de Casa e integrante do Programa Universidade Para a Melhor Idade

Uma das disciplinas que mais mobilizou os alunos na primeira turma, relata Rafael, foi a de Psicologia. “Essa é uma das que eles mais gostavam, porque trabalhava a questão psicológica. Na primeira turma, muitos idosos tinham problemas depressivos e foram melhorando. Ampliaram os conhecimentos”, acrescenta.
 
O programa é todo voluntário e gratuito. “Eu sou coordenador atual e a gente não ganha. Os idosos não pagam nada. É uma parceria. A gente entende junto com a instituição que é uma forma de dar esse retorno para a nossa comunidade, para a sociedade. E esse programa surge desde quando eu era aluno. Vem desde as pesquisas que eu fiz. Então lá nos estágios eu via a necessidade dos que moram sozinho, que não tinham com quem conversar. Então esses espaços são ocupados também por eles”, reforça. 

É uma iniciativa que traz um impacto não só para os idosos. Ele impacta de forma indireta a família. E de forma direta também, porque os filhos iam para dentro da instituição fazer festa de aniversário e participavam das festas que tinham. Os idosos se conheciam, trocavam experiências. E os professores, eu ganhamos muito com isso. A vivência que os idosos têm traz é uma carga gigantesca para a gente. 
Rafael Bezerra Duarte
Enfermeiro e doutorando em Saúde Coletiva na Uece

Nesse processo, Rafael já encontrou ex-professores do Ensino Médio, do Ensino Fundamental, e acrescenta “temos dentistas, temos médicos. Temos também essas pessoas já formadas porque o intuito do programa vai além de ter uma graduação”. 

Os idosos são tanto da sede da cidade como das áreas rurais, advindos da área urbana e dos sítios, eles chegam à universidade em carros, motos, são levados pelos filhos, netos, conta Rafael. 

Trajetória na própria cidade

Nascido e criado em Icó, Rafael quando criança residia na área rural da cidade, em um sítio chamado Coelho. A família, um pai agricultor que é também mecânico e a mãe dona de casa e vendedora autônoma, precisou deixar a localidade quando Rafael precisou avançar nos estudos ainda nas séries finais do fundamental. 

Na sede de Icó, cursou o ensino médio na Escola Estadual Vivina Monteiro entre 2005, 2006 e 2007. Na unidade, a atual diretora, Talita Lima da Silva, que na época do ensino médio de Rafael era professora, conta que ele sempre foi “muito curioso e buscava conhecimento”.

O estudante de escola pública que se tornou enfermeiro, acrescenta ela: “se envolvia nas atividades, era um menino protagonista, buscava leitura, era um aluno que realmente fazia a diferença”. 

Na faculdade, Rafael e Talita se reencontraram, pois ela ministrava uma das disciplinas relacionadas à metodologia científica. Lá, aponta ela, “percebeu que os traços que ele já tinha no ensino médio se aperfeiçoaram”. 

No percurso acadêmico e profissional, Rafael fez estágio voluntário na Unidade Básica de Saúde São Geraldo, um posto localizado próximo a casa dos pais. Também trabalhou em outro posto na área rural, justamente próximo à propriedade da sua família, de onde se mudaram quando ele ainda estava no ensino fundamental.  Dessas experiências brotaram vários frutos. 

Pesquisa em saúde coletiva

Um dos efeitos do trabalho no posto de saúde foi a aproximação com o tema que norteia as pesquisas de Rafael até hoje: o trabalho dos agentes comunitários de saúde. 

“Um dos projetos que foi criado por mim e teve o apoio da equipe da unidade São Geraldo foi um projeto que era para adotar um idoso. A gente ia no território com a agente comunitária de saúde e vi quem tinha a necessidade de ser adotado. Fazíamos visita quinzenal, criamos um prontuário que servia de dados para a unidade e esses idosos eram recolhidos uma vez por mês e iam para a faculdade ter uma aula com um outro profissional. E desse projeto surgiu um projeto maior que é a Universidade Para a Melhor Idade”, relata. 

Rafael também atuou como técnico em laboratório e como professor nos cursos de saúde (Enfermagem, Fisioterapia, Psicologia e Educação Física) da instituição na qual foi aluno na graduação. Hoje, Rafael é doutorando no Doutorado Acadêmico em Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Ceará (Uece).