Diferentes situações de violência impactam o trabalho de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e o acesso da população ao serviço desses profissionais. É nas regiões mais vulneráveis, onde a atuação deles é ainda mais necessária, que eles enfrentam mais dificuldade. Esses foram alguns achados da pesquisa “Efeito da Covid-19 e da violência no processo de trabalho e na saúde mental dos agentes comunitários no Brasil”, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Ceará.
Para a pesquisa, foram entrevistados 1,9 mil agentes comunitários de oito municípios nordestinos, sendo quatro capitais — Fortaleza, Teresina, João Pessoa e Recife — e quatro cidades do interior do Ceará — Sobral, Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. O estudo aponta que 40% desses profissionais apresentam sofrimento mental e 43,6% já se sentiram ameaçados pela violência durante o trabalho.
Os resultados da pesquisa serão apresentados e discutidos na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, durante visita técnica que ocorrerá no período de 18 a 22 de março. Oito pesquisadores de instituições do Ceará e de Pernambuco vão compor a equipe que irá à instituição.
Inicialmente, a pesquisa tinha como foco o impacto da violência no trabalho dos agentes comunitários e começou com coleta de dados em Fortaleza, a partir de 2019. Com o início da pandemia de Covid-19, o grupo acrescentou esse aspecto à investigação. O número de municípios acompanhados pelo estudo também foi ampliado.
RESULTADOS EM FORTALEZA
Com os dados coletados na capital cearense, foi observada uma relação inversa entre as atividades realizadas pelo agente comunitário de saúde e o nível de violência no bairro, considerando a mortalidade por homicídio. “Quanto maior esse nível de violência, é onde ele tem mais dificuldade de desenvolver as atividades no território, como ações de promoção da saúde, visitas domiciliares, busca ativa, entre outras”, explica a coordenadora do projeto, professora Anya Pimentel Fernandes Gomes Vieira Meyer.
Pesquisadora da Fiocruz Ceará e pesquisadora visitante na Universidade de Harvard, Anya Vieira Meyer explica que é exatamente assim que funciona a estratégia de Saúde da Família: a cobertura tende a ser maior nas regiões mais vulneráveis. Porém, é nesses locais que o profissional mais tem dificuldade de atuar, o que ocasiona baixa efetividade do trabalho, afeta o cuidado à saúde da população e ainda impacta a saúde mental e física dos agentes comunitários.
Artigos produzidos à época, com os dados coletados na capital cearense, mostram essa realidade de forma “muito clara” em Fortaleza, principalmente na Regional I — onde estão os bairros Barra do Ceará e Álvaro Weyne, por exemplo —, na Regional IV — Bom Jardim e Granja Lisboa, entre outros — e em alguns locais da Regional VI — onde ficam Messejana, Curió e outros bairros.
“Esses são os locais onde os agentes têm mais dificuldade de agir e onde também temos um maior nível de mortalidade por homicídio”, comenta a pesquisadora, acrescentando algumas “pequenas áreas” na Regional II, principalmente perto do bairro Vicente Pinzón.
“OS ÍNDICES SÃO GERAIS”
A percepção dos Agentes Comunitários de Saúde é de que, nos últimos anos, a violência contra eles tem aumentado “em grandes proporções”. Com a atuação das facções criminosas, por exemplo, há dias que os profissionais são proibidos de entrar em determinadas comunidades. Há até mesmo casos de ameaça de morte. O relato é da presidente da Federação dos Agentes de Saúde e Agentes de Combate às Endemias do Ceará e da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias (CONACS), Ilda Angélica Correia.
Como conhecemos muito bem o território e somos bem conhecidos também, nós já recebemos a informação de que naquele dia você não pode atuar dentro daquela determinada área. Isso é uma questão que eu particularmente julgo muito preocupante, porque o poder público não está tendo condição de dar a garantia do trabalho dos agentes de saúde por conta do poder do crime organizado.
Outro aspecto relatado por ela é a ocorrência de abuso e assédio — tanto moral quanto sexual —, principalmente contra mulheres. Todo esse contexto tem levado agentes comunitários de saúde a buscarem profissionais de saúde mental.
“Temos um grande número de agentes de saúde que são, hoje, clientes dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), (que estão) usando remédios controlados para tentar equilibrar a questão emocional, com síndrome do pânico, com insônia, com quadro de depressão, por conta dessa vivência do dia a dia”, diz.
Antes, essa realidade era percebida com mais frequência em áreas urbanas. Agora, esses impactos da violência são sentidos “em qualquer lugar do nosso Estado”, afirma Ilda Angélica Correia. “Antigamente, a gente percebia muito isso mais aqui em Fortaleza. Era mais gritante. Mas hoje não. Hoje não tem mais isso. Os índices são gerais.”
Para melhorar esse cenário, a presidente das instituições aponta a necessidade de atitudes “bem fortes e bem drásticas” por parte dos governos nas três esferas — municipal, estadual e federal. Porém, as políticas públicas que podem minimizar esse efeito, como ações na Educação, vão ter resultado a longo prazo. De imediato, ela afirma que é preciso ter espaços de acolhimento para os agentes de saúde, para minimizar “o transtorno que isso está causando na vida desse trabalhador”.
“Afinal de contas, esse trabalhador, que é quem vai para dentro do domicílio, quem vai no seio da família, precisa estar bem, com a sua saúde mental, espiritual e psicológica ok para poder acolher exatamente as famílias. E essa violência está inserida exatamente dentro dos domicílios, que são a nossa 'sala de trabalho'.”
IMPACTOS PARA O PROFISSIONAL E PARA A COMUNIDADE
Parte da equipe de Saúde da Família, o agente comunitário é uma pessoa da comunidade treinada para lidar com uma série de questões de saúde. Ele é o principal vínculo entre a comunidade, o território e a unidade de saúde, explica Anya Vieira Meyer. “Muitas vezes é o primeiro e/ou único rosto do Estado que chega em áreas mais vulneráveis”, complementa.
No Ceará, foram entrevistados 1.003 agentes comunitários. Segundo a pesquisa, cerca de 85% deles vivem no bairro onde trabalham. Com isso, a professora aponta que eles percebem a violência “duplamente”. “Como o agente vive e mora nesse contexto de violência, ele adoece. Física e mentalmente. Escutamos muitos dos agentes comunitários de saúde que eles são agentes todos os dias, o dia todo. (...) Ao viver na comunidade, ele vive junto com ela essa questão da violência e os impactos”, explica.
O levantamento também mostra que 26,3% dos profissionais entrevistados no Estado já deixaram de acompanhar alguma família por conta da violência.
Uma das frentes do estudo, no Cariri cearense, observou que, na visão dos agentes comunitários de saúde, os idosos que vivem em áreas mais violentas tendem a adoecer mais e têm mais dificuldade para chegar à unidade de saúde. Além disso, as visitas domiciliares dos agentes quanto de outros profissionais — médicos, dentistas e enfermeiros — a essa população tendem a ser mais escassas e a ter menor duração.
“Então, notamos que, além de afetar o agente comunitário, a violência afeta a comunidade em várias frentes”, afirma a professora. “Ao compreender questões como essa, ao entender como a violência afeta, precisamos pensar em políticas públicas que possam mitigar essas questões e assim possibilitar que a estratégia de saúde da família e os agentes comunitários de saúde desenvolvam seu trabalho da melhor maneira.”
Entre as possíveis políticas públicas que podem ser trabalhadas nesse contexto, a pesquisadora cita, além de ações intersetoriais para o enfrentamento da violência, formação profissional que ajude o agente comunitário e os profissionais da estratégia de saúde da família a lidar com essa situação. Ela pontua também a importância do aumento da resiliência do sistema de saúde.
Compreendemos resiliência como a capacidade do sistema, mesmo sofrendo com estressores, de continuar dando resposta à comunidade, desenvolvendo suas atividades e ao passar por esses estressores, aprender com eles e sair do outro lado melhor. (...) E trazemos dados que acreditamos que podem ajudar na construção dessas políticas e no desenvolvimento delas.
A professora também aponta como “um dos grandes diferenciais” do projeto, além da pesquisa em si, a realização de uma série de outras atividades, como oficinas com a devolutiva dos resultados, pensando em como mitigar ou trabalhar as questões levantadas. “Imaginamos que formações com esse enfoque também ajudam no processo de trabalho dos agentes e na sua saúde física e mental”, pontua.
Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS) informou que participou da construção e execução da pesquisa, que vem auxiliando o desenvolvimento de ações para minimizar os impactos da violência urbana para com os profissionais de saúde. “Com base no estudo, a SMS desenvolve um trabalho multissetorial com os responsáveis pela segurança pública da Capital, visando identificar soluções para fortalecer a segurança nas áreas das unidades de saúde”, complementa a Pasta.
Além disso, a secretaria informa que segue com as políticas do Programa Acesso Mais Seguro para Serviços Públicos Essenciais (AMS), desenvolvido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), por meio de ações comportamentais que buscam mitigar as consequências da violência armada para os profissionais e para a população atendida.
“A iniciativa também gerencia situações de crise, com grupos de gestão de estresse, onde é disponibilizado o trabalho de psicólogas com atendimento online e presencial aos colaboradores envolvidos, e também atividades específicas a grupos com escuta especializada em atenção psicossocial”, finaliza o comunicado.
O Diário do Nordeste buscou a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS) e questionou se é realizado algum trabalho para amenizar esses efeitos. A Secretaria sugeriu que a reportagem procurasse a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), que informou que a gestão dos agentes comunitários é dos municípios. O Conselho das Secretárias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems) também foi procurado, mas não houve retorno até a publicação desta matéria.
PARCERIA COM A UNIVERSIDADE DE HARVARD
A pesquisa “Efeito da Covid-19 e da violência no processo de trabalho e na saúde mental dos agentes comunitários no Brasil” conta com financiamento da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fiocruz e da Fundação Lemann, por meio da Universidade de Harvard. Ele foi desenvolvido por pesquisadores da Atenção Primária à Saúde (APS) que integram instituições da rede Nós APS Brasil.
A comitiva de pesquisadores da rede Nós APS Brasil que irá para Harvard é composta estudiosos da Fiocruz Ceará e da Fiocruz Pernambuco, da Universidade Federal do Ceará (UFC), da Universidade Estadual do Ceará (Uece), da Universidade Regional do Cariri (URCA), da Universidade do Vale do Acaraú (UVA) e da Secretaria Estadual de Saúde do Ceará (Sesa).
Eles serão recepcionados pelas professoras Anya Vieira Meyer, Aisha Yousafzai e Márcia Castro. Estão previstos encontros com pesquisadores americanos do programa Takemi da School of Public Health T. Chan e do David Rockfeller Center for Latin American Studies, entre outros.
Segundo a coordenadora do projeto, a parceria com a Universidade de Harvard tem se mostrado “extremamente importante”, tanto em relação ao financiamento quanto na expertise dos pesquisadores que têm atuado no grupo de pesquisa.
“A ida dos nossos pesquisadores para a universidade é muito importante para fortalecer esse vínculo, mostrar para a comunidade acadêmica da Universidade de Harvard os nossos principais achados, escutar de outros pesquisadores as suas opiniões, as possibilidades futuras de encaminhamento do projeto”, comenta Meyer.