Velho do Saco, Perna Cabeluda e Hilux Preta: as lendas urbanas que assustam moradores de Fortaleza

Figuras presentes em histórias populares causam fascínio e medo na mesma medida

Escurece na Terra da Luz. Embora Fortaleza seja mais conhecida pelos dias ensolarados, as noites trazem novos imaginários povoados por histórias e lendas de terror. Algumas delas, como o Velho do Saco, a Perna Cabeluda e a Hilux Preta, atravessam gerações de famílias e amedrontam das crianças aos mais velhos. Neste Halloween, dia 31 de outubro, o Diário do Nordeste recupera algumas dessas narrativas.

Seja na escola, numa roda de bar ou no ponto de ônibus, figuras fantásticas sempre voltam à tona para perseguir os desavisados ou botar de pé os cabelos de quem conta o causo. Muitas delas são inspiradas por personagens popularizados pelo cinema, como extraterrestres, vampiros e lobisomens. Outras, porém, têm um apelo mais local.

Entre eles, está a histórica figura do Velho do Saco, dito um homem idoso, geralmente sujo e de barba longa, transitando por aí com um grande recipiente nas costas. O objeto seria ideal para guardar meninos e meninas sequestrados por ele, após uma minuciosa espreita para identificar o melhor momento para agir.

Essa versão é possivelmente uma releitura do Papa-Fígado, outro homem pálido que assassinava crianças, removia delas o fígado e o comia. O medo fazia com que os pais redobrassem a segurança em casa, trancando bem as portas, ou expedissem mil recomendações quando os pequenos precisavam andar sozinhos.

Nas décadas de 1980 e 1990, outro monstro surgiu para atormentar os fortalezenses: a Perna Cabeluda. Sim, uma grande perna autônoma que circulava pela cidade e chutava violentamente suas vítimas - em alguns casos, de tirar sangue. 

Em 1989, conforme o arquivo do Diário do Nordeste, o então secretário estadual da Segurança Pública, Moroni Torgan, precisou ser ouvido sobre o frisson: “Acho que essa tal Perna não existe. Mas se ela existir e desejar marcar encontro comigo, estarei lá”, declarou à imprensa sobre o monstro imaginário.

Embora tenha feito a festa em bairros como José Walter e Mondubim, na verdade, a lenda tem origem pernambucana, segundo o Grupo de Estudos de Literatura Fantástica da Universidade Federal do Ceará (Grelf-UFC). Com medo de se deparar com o bicho, a população de Recife precisou mudar a rotina durante a década de 1970, especialmente à noite.

Já no início dos anos 2000, a criançada tinha pavor da Hilux Preta. Bastava um carro com essa característica aparecer na rua para todas se esconderem dentro de casa. Era isso, ou ser levada à força pelos seus ocupantes e correr o risco de ter os órgãos internos retirados e vendidos. 

A boataria deu dor de cabeça para a Polícia Civil, responsável por investigações de crimes, que costumava negar a repórteres os supostos sequestros para tranquilizar mães e pais.

O problema para a força de segurança, contudo, não era novo. Décadas antes, a versão propagada era de outro carro da moda: um Opala, mas igualmente preto.

O terror também se atualiza. Em meados de 2013, o novo boato da cidade era o Maníaco da Seringa, um homem que andaria pelo Centro perfurando vítimas aleatoriamente. A versão mais comum é que ele infectaria outras pessoas com o próprio sangue, após testar positivo para o vírus da imunodeficiência humana (HIV). 

Esta, porém, não era uma lenda: em 2013 e 2015, a Polícia Militar prendeu um homem chamado Francisco Nogueira por atacar mulheres no braço ou na barriga, nos bairros Centro e Benfica. As seringas não estavam contaminadas e os casos foram considerados lesão corporal. 

Fantasia popular

O diretor e roteirista cearense Wesley Gondim considera "fascinante" como as lendas urbanas em Fortaleza e no Nordeste "revelam mais do que só histórias de terror; mas refletem medos sociais e inseguranças que vão se adaptando com o tempo". São histórias que, mesmo antigas, "ainda têm espaço no imaginário popular, pois tocam em ansiedades comuns, como a segurança, a infância ou figuras ameaçadoras".

Apesar de a sociedade hoje ser atravessada por outras preocupações – muitas delas ligadas à tecnologia, à vigilância e ao mundo virtual – essas lendas permanecem relevantes ou são reinventadas, "se tornando uma forma de expressão viva que segue assustando e fascinando novas gerações".

"Acredito que esse é o papel do imaginário de terror: ele se transforma, mas sempre encontra formas de ecoar nossos medos mais profundos", observa.

Esse exame é corroborado pela dissertação “Aspectos do fantástico na literatura cearense”, apresentada por Francisco Vicente de Paula Júnior ao mestrado em Literatura Brasileira na Universidade Federal do Ceará (UFC) e disponível no repositório da instituição.

Na análise do autor, hoje professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), a maioria dos contos de tonalidade fantástica tem uma motivação popular, ou seja, nasce de alguma crendice ou superstição alimentada pelo povo e seus variados ritos.

"Devemos pensar o Fantástico como entidade viva [...] capaz de adequar-se ao tempo e a todas as suas mudanças. [...] Porque é tão impreciso e ambíguo que não se tem certeza de quase nada a seu respeito. Mas é exatamente essa ambiguidade, geradora dessa incerteza, que lhe dá fascínio", escreve.

Medo é um recurso natural

O envolvimento com essas lendas traz à tona emoções intensas, como medo e adrenalina, segundo a psicóloga infanto-juvenil Mariana Silva. Quando se assiste a um filme de terror, exemplifica ela, nosso cérebro vivencia essas emoções ameaçadoras sem enfrentar um perigo real. Isso nos permite processar o medo de forma controlada. 

“O medo é uma emoção fundamental para nossa sobrevivência como espécie, pois nos mantém em alerta diante de situações de risco, atuando como um mecanismo protetor. Aprendemos a ter medo tanto por experiências próprias quanto pela observação dos outros, o que varia conforme a cultura em que estamos inseridos”, considera.

Quando o medo se torna um problema?

No entanto, a especialista avalia que o medo se torna prejudicial quando é usado como ferramenta de controle. Pais ou responsáveis que evitam explicar razões por trás de regras e normas e recorrem a um “terrorismo” emocional por meio das histórias podem comprometer a autonomia dos filhos, crianças ou adolescentes em fase de desenvolvimento emocional e cognitivo

Utilizar o medo gera obediência imediata, mas sem criar uma aprendizagem efetiva e duradoura, resulta em possíveis problemas como ansiedade excessiva, fobias persistentes, isolamento social ou dificuldades para dormir.
Mariana Silva
Psicóloga infanto-juvenil

Assim, o papel dos pais e responsáveis é fundamental para que a criança reconheça e lide de forma saudável com as emoções. Entre as recomendações, estão validar os medos, explicar o que é fantasia, controlar o acesso a conteúdos apropriados para a idade e não usar o medo como estratégia disciplinar. 

Caso o medo comece a afetar a vida cotidiana e atividades simples, alerta Mariana, é necessário buscar ajuda profissional.