Era 5 de fevereiro de 1966 e os militares haviam tomado a presidência do Brasil quase 2 anos antes, no golpe de 1964. Veio o Ato Institucional 3. E com ele mais retirada de direitos. Dali em diante o que já acontecia com a presidência, se estendeu para governadores e prefeitos de capitais: a eleição passou a ser indireta e a população ficaria décadas sem exercer o direito de voto para os cargos do Executivo.
No Ceará, significava que quem votou na eleição que elegeu Virgílio Távora, em 1962, só voltaria a escolher democraticamente um governador 20 anos depois. Na Capital, quem pôde votar para eleger Murilo Borges Moreira, também em 1962, só teve como exercer esse mesmo direto para prefeito 23 anos depois, quando Maria Luíza venceu as eleições em 1985.
O AI 3 foi um dos 17 atos autoritários com poder de sobrepor a Constituição promulgada pelos militares. O segundo estabelecido na gestão do cearense Humberto Castelo Branco, que já havia, por meio de Ato Institucional, alterado ritos do processo legislativo, extinguido partidos políticos, garantido a si mesmo o poder de suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por 10 anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais. Castelo deixou a presidência em março de 1967.
Conforme o AI 3, a eleição de governadores e vice-governadores dos estados passaria a ser feita “pela maioria absoluta dos membros da Assembléia Legislativa, em sessão pública e votação nominal”. Na prática, venciam os candidatos indicados pelos militares que ocupavam a presidência.
Esta é a quarta reportagem de série que trata da Ditadura Cívico-Militar e seus desdobramentos no Ceará. Desde o domingo (31), data que marca os 60 anos do Golpe Militar de 1964, são publicados textos que tratam do regime autoritário que durou 21 anos no Brasil.
Lacunas no Ceará
No Ceará, na lacuna de 20 anos sem eleições diretas para governador, 7 políticos escolhidos pelos militares ocuparam o cargo. Dentre eles, o conhecido trio de coronéis: César Cals, Adauto Bezerra e Virgílio Távora.
Àquela altura, vigorava no país o bipartidarismo estabelecido pelo AI 2, quando, desde o início de 1966, foram organizados os dois partidos que dividiram a cena política brasileira na ditadura: o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (Arena). O primeiro era o partido de oposição e o segundo o do governo.
No Ceará, os 7 políticos que governaram o Estado no intervalo de suspensão de eleição direta pertenciam à Arena ou ao Partido Democrático Social (PDS) que, após o fim do bipartidarismo, em novembro de 1979, substituiu a Arena, com a reforma ocorrida no governo do militar João Figueiredo.
Portanto, o Estado foi governado pelos chamados governadores "biônicos" que, no campo da política, eram figuras que ascenderam ao poder sem terem sido eleitos pela população, e com isso eram considerados um artifício dos militares para interferir nos rumos do país em níveis regionais e locais. Mas para cargos como deputados e senadores a eleição direta foi mantida.
Governadores do Ceará não eleitos e indicados por militares na ditadura
- Franklin Gondim Chaves (Arena) - Político e proprietário rural que era presidente da Assembleia Legislativa e governou o Ceará somente 1 mês em 1966, entre a renúncia de Virgílio Távora e a escolha do novo governador. Franklin foi indicado por Castelo Branco.
- Plácido Aderaldo Castelo (Arena) - O político era bacharel em direito e professor e comandou o Estado entre 1966 e 1971. Ele dá nome a Arena Castelão. Plácido foi indicado por Castelo Branco.
- César Cals de Oliveira Filho (Arena) - O político e militar foi governador do Ceará entre 1971 e 1975. Ele implantou a Empresa Cearense de Turismo (Emcetur) e edificou o Teatro da Emcetur, o antigo Centro de Convenções de Fortaleza e a rodoviária. Ele foi indicado pelo militar Emílio Médici.
- José Adauto Bezerra (Arena) - O político e militar governou entre 1975 e 1978. Foi responsável pela construção do sistema de esgoto sanitário em Fortaleza, com o chamado Interceptor Oceânico. Ele foi indicado pelo militar Emílio Médici.
- José Waldemar de Alcântara (Arena) - O político e médico era vice de Adauto e assumiu o Governo do Estado por um ano e um mês entre 1978 e 1979. Um dos feitos foi a estruturação do Centro de Hemoterapia do Estado. Ele foi indicado pelo militar Emílio Médici.
- Virgílio de Moraes Fernandes Távora (Arena/PDS) - O político e militar que já havia governado o Ceará antes da ditadura voltou ao governo por via indireta e permaneceu no cargo de 1979 a 1983. Uma das iniciativas foi a reativação do Distrito Industrial de Fortaleza e a ampliação do sistema de abastecimento de água de Fortaleza.Foi indicado pelo militar João Figueiredo.
- Manoel de Castro Filho (PDS) - O político e bacharel em direito era vice de Virgílio e foi governador entre 1982 e 1983 quando Virgílio renunciou para disputar uma vaga no Senado. Ele foi indicado pelo militar João Figueiredo, sendo o último governador biônico.
No livro “História do Ceará - dos índios à geração Cambeba”, o historiador Airton de Farias relata que a instalação do regime militar “fortaleceu o Executivo Estadual, na perspectiva de que os governos estaduais passaram a ser intermediários oficiais entre o governo central e as lideranças locais na concessão de benefícios, empréstimos, favores, empregos para a preservação do sistema de compromissos”.
O historiador também aponta que na primeira eleição indireta, além da escolha de Plácido Castelo referendada pela Assembleia Legislativa, a Arena também nomeou para administrar Fortaleza o ex-superintendente da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) e engenheiro José Walter Cavalcante.
Situação em Fortaleza
O AI 3 também alterou a forma de escolha dos prefeitos das capitais. A norma autoritária estabeleceu que os prefeitos de Fortaleza seriam escolhidos de modo indireto “mediante prévio assentimento da Assembléia Legislativa ao nome proposto”. Já os prefeitos dos demais municípios, como os do interior, seguiram sendo eleitos por voto direto e maioria simples. O mesmo ocorreu com vereadores, incluindo os de Fortaleza.
A partir de 1968, outras cidades declaradas de interesse da segurança nacional, conforme a Lei Federal 5.449/1968, por terem portos, por exemplo, passaram também a ter eleições indiretas para prefeito. No Ceará, isso não alterou o que já estava em curso.
Na Capital, quando a ditadura militar tomou forma, o general Murilo Borges Moreira (Partido Libertador - PL) era prefeito. Ele permaneceu no cargo até 1967. Murilo Borges foi o último prefeito eleito de Fortaleza antes do golpe de 1964, em um pleito que ocorreu em 7 de outubro de 1962. Segundo o Tribunal Regional Eleitoral (TRE), naquela altura, Fortaleza tinha 115.551 eleitores. Murilo Borges teve 34.328 votos.
Prefeitos de Fortaleza não eleitos e indicados indiretamente na ditadura
- José Walter Cavalcante (Arena) - foi prefeito entre 1967 e 1971
- Vicente Cavalcante Fialho (Arena) - foi prefeito entre 1971 e 1975
- Evandro Ayres de Moura (Arena) - foi prefeito entre 1975 e 1978
- Luís Gonzaga Nogueira Marques (PDS) - foi prefeito entre 1978 e 1979
- Lúcio Alcântara (PDS) - foi prefeito entre 1979 e 1982
- José Aragão e Albuquerque Júnior (PDS) - - foi prefeito entre 1982 e 1983
- César Cals Neto (PDS) - foi prefeito entre 1983 e 1985
- José Maria de Barros Pinho - (MDB) - foi prefeito entre 1985 e 1986 - ele foi indicado pelo governador Gonzaga Mota que naquela altura tinha sido eleito por voto popular em 1982. Barros Pinho ficou no poder para cumprir um mandato tampão, pois César Cals Neto havia sido retirado.
Efeitos da supressão das eleições diretas
A ditadura militar brasileira, dentre outros pontos, teve a característica de abolir as eleições para governador e prefeito nas capitais, mas manteve para vereadores, deputados e senadores. Mas, o que justifica a preservação do direito de voto para os parlamentares?
O professor doutor do curso de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Altemar Muniz, afirma que essa dinâmica que vigorou no período autoritário era “basicamente uma estratégia da ditadura de tentativa de dar uma certa normalidade, mas ao mesmo tempo tendo um certo controle político da situação”.
Ele reforça que o projeto da ditadura “era um campo de disputa de poder e dentro da própria ditadura havia militares que tinham a compreensão sobre que destino esse golpe daria e tinha outra turma que não queria entregar isso tão fácil”.
O direito de voto veio com muita luta, muito esforço. As gerações das décadas de 1960 e 1970 aprenderam na marra o valor de uma democracia. É muito melhor ter uma democracia cheia de problemas, como temos, do que ter uma ditadura. Na ditadura não é só o presidente que é um ditador. Todos incorporam a ditadura nas vidas. E tivemos que penar muito para incorporar visões críticas, individualidades para termos direito a falar. E isso foi uma conquista muito difícil e precisa ser valorizada.
O professor também aponta que no Brasil, diferentemente dos congêneres argentino, uruguaio e paraguaio, os ditadores “tinham uma ideia de que era necessário haver sucessões para que o poder não ficasse concentrado em uma única pessoa, que era necessário ter um controle sobre capitais e estados”.
De acordo com ele, nas cidades do interior foi permitido que houvesse as disputas eleitorais, com a permissão de um partido de oposição. Mas, explica, a busca pela Arena - partido do governo ditatorial - era tão grande que em algumas cidades foram criadas sublegendas, com candidatos da Arena 1 e Arena 2. Altemar também reforça que, nesse cenário, de disputa de poder normal entre as oligarquias, as elites, era muito difícil um partido da oposição ganhar”.
"Acima de tudo o que você tem (com a proibição da eleição direta) é uma sensação de cidadania sequestrada. A ditadura tinha uma coisa de permitir que os processos eleitorais acontecessem dentro de uma certa ordem. As eleições para presidente aconteciam pelo alto, mas mesmo elas acontecendo pelo alto, a ditadura deixa que certo elemento popular, de base, pudesse aparecer", destaca.
O professor também reforça que as gerações que vivenciaram a ditadura só conseguiram ter “uma ideia de uma democracia de forma plena quando em 1989 conseguiram votar para presidente”.
Retorno do direito ao voto direto
No Brasil o retorno às eleições diretas para governadores e prefeitos, após muita pressão popular, veio primeiro que a volta da escolha direta dos presidentes. No país, ocorreu uma eleição unificada em 1982 para que novos governadores, eleitos pela população, assumissem em 1983.
No Ceará, o candidato do PDS, o economista Luiz Gonzaga da Fonseca Mota, apoiado pelos coronéis Adauto Bezerra, César Cals e Virgílio Távora, venceu para governador e ocupou o posto entre 1983 e 1987. As eleições ocorreram em 15 de novembro de 1982. Naquele pleito, o Ceará tinha 2.431.030 eleitores. Gonzaga Mota obteve 1.149.259 votos, conforme o TRE-CE.
Em 1986, ele rompeu com os coronéis e apoiou a candidatura do empresário Tasso Jereissati. No âmbito nacional, nas mobilizações pela reabertura política e retomada da democracia apoiou Tancredo Neves.
Já em Fortaleza, o direito ao voto direto para prefeito foi recuperado 23 anos depois. A prefeita eleita por voto popular, Maria Luíza Fontenele (que foi do PT e do PSB), teve 121.326 votos no pleito que ocorreu em 15 de novembro de 1985, quando 492.792 eleitores compareceram às urnas, conforme o TRE-CE. Maria Luíza foi a primeira mulher eleita como prefeita de uma capital no Brasil.