Professora trans é demitida do IFCE por se ausentar para estudo: ‘pra gente a pena é mais violenta’

A docente deve entrar com um processo judicial para recorrer da decisão

A primeira professora transexual do Instituto Federal de Educação do Ceará (IFCE) foi demitida em um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), aberto devido às ausências da docente durante o doutorado, na última segunda-feira (8). Êmy Virginia Oliveira da Costa denuncia que “essa é uma decisão transfóbica”, na qual recebeu a penalidade máxima mesmo tendo feito a reposição das aulas.

A Reitoria do IFCE informou, por meio de nota, que uma comissão constatou que a professora faltou ao trabalho por 78 dias intercalados e isso caracteriza “inassiduidade habitual” que, conforme o Art. 139 da Lei nº 8.112/90, leva à demissão. Nos últimos 5 anos, mais 3 servidores deixaram a instituição pelo mesmo motivo.

O processo administrativo em questão foi aberto em 2019, quando Êmy foi aprovada no doutorado em Linguística, na Universidad de la República, no Uruguai. A cada 3 meses, a docente precisava ir assistir aulas no país vizinho por um período de 3 semanas, quando se ausentava do IFCE em Tianguá, na Serra da Ibiapaba.

Emy solicitou a dispensa das das aulas que ministrava em cursos do ensino superior na área da linguística, mas não conseguiu devido a outro procedimento na instituição. “Comuniquei ao diretor e pedi o afastamento total, mas eu estava em transferência para o campus de Baturité, ele disse que eu não podia pedir afastamento e aí foi o primeiro problema”, contextualiza.

Para não prejudicar os estudantes, a professora disse que começou a antecipar as aulas no contraturno e registrou isso no sistema usado pelo IFCE. No entanto, o procedimento oficial exige que a antecipação das aulas seja formalizada com a gestão e a reitoria.

“Todo mundo me via no campus, porque a carga-horária foi toda ministrada e isso não foi apagado. Não havia nenhuma reclamação formal, eu respondia e-mails da gestão, mas na 3° vez eu fui chamada porque surgiu uma denúncia anônima”, lembra.

Foi quando passou a executar o processo de autorização para dar as aulas antes do período, mas Êmy alega que o 4° período em que precisou se ausentar em 2019 não teve resposta até 2023, quando recebeu uma negativa.

“Eu fui porque perderia a disciplina e o ingresso acontece a cada 2 anos”, lembra sobre a decisão da época. Somando os 4 momentos em que teve de se ausentar, a contagem de faltas chegou a 78.

Conforme o Art. 139. da legislação “entende-se por inassiduidade habitual a falta ao serviço, sem causa justificada, por sessenta dias, interpoladamente, durante o período de doze meses”. Porém, a professora questiona a forma como foi feita a contabilização.

“Eles consideram até os sábados e domingos do período que eu estava no Uruguai, um dia eu viajei no sábado e eles consideram como falta”, detalha.

Não foram consideradas as minhas ótimas avaliações e os meus anos de serviço sem responder PAD. Eles poderiam ter aplicado uma pena mais branda e isso aconteceria se fosse uma pessoa cis e hétero, mas para uma pessoa trans é sempre a mais violenta.
Êmy Virginia Oliveira da Costa
Professora

Êmy também avalia que “a comissão era formada apenas por homens” e, com a conclusão do PAD, avalia como seguir a vida e recorrer judicialmente da decisão.

A Reitoria do IFCE entende a comissão como independente e classificou como taxativa a demissão como penalidade para casos de inassiduidade habitual. Contextualiza também que existem mais de 100 servidores afastados para cursar pós-graduação conforme as normas do IFCE que permitem a contratação de professores substitutos.

“Ao final do processo, a comissão elaborou um relatório final, orientando pela demissão. O relatório foi submetido à Procuradoria Federal junto ao IFCE, órgão de assessoramento jurídico vinculado à Advocacia Geral da União, que manteve o entendimento pela demissão e pela regularidade da instrução processual”, detalhou a instituição.

“Primeira e única trans até aqui”

Êmy Virginia foi transferida para o IFCE de Baturité antes da conclusão do processo administrativo, mas já não volta ao local neste momento para dar aula. Ela conta com apoio jurídico para reverter a demissão.

“O advogado vai entrar com uma liminar pedindo a suspensão da demissão alegando a contagem dos dias e desse 4° período de afastamento, considerando que não houve prejuízo, que a pena é desproporcional e essa negação da autorização depois de 3 anos”, explica.

No momento, a maior preocupação da professora é com o próprio sustento e o da mãe. “Eu fui a primeira pessoa a entrar na faculdade da família, fiz mestrado trabalhando e nunca fui privilegiada com nada”, compartilha. 

Com a demissão, estudantes e colegas de profissão criaram um abaixo-assinado e campanhas virtuais contra a decisão da Reitoria.

“Eu tenho recebido, sobretudo dos estudantes, manifestações bonitas que me comovem muito porque convivo muito com eles, meus colegas professores que estão organizando uma carta aberta ao reitor questionando a decisão e colegas de outros campi. Nessa escuridão toda, tenho visto coisas bonitas”, declara.

As notificações no celular se acumulam, porque a prioridade é cuidar da saúde mental. “O mais difícil disso tudo é não ter elementos explícitos para mostrar que essa decisão é transfóbica, porque se dilui e é pior do que alguém diz algo (desrespeitoso), porque eu não consigo mostrar”, reflete.

Não há gravidade, (a decisão) precisa ser associada a um prejuízo, no relatório final eles levantam a ideia de que as aulas não foram dadas, embora os alunos tenham dito que as aulas foram dadas.
Êmy Virginia Oliveira da Costa
Professora

Êmy foi aprovada no concurso público federal em 2016 e, em 2019, começou o processo de transição e é a “primeira e única trans até aqui” no quadro de professores do IFCE. “Todo dia quando eu atravesso esse corredor, estou dizendo que existo”, conclui.