Há uma década, o Ceará vivenciava a pior seca recente de sua história. Aquele ano de 2012 fechou com acumulado de chuva de apenas 363.8 milímetros, volume este 54,6% abaixo da média histórica (800.6 mm). Índice inferior a 2012 só foi registrado em 1983, quando o ano fechou com 359,7 mm.
Diante de tão baixos volumes em 2012, uma grande parcela da população cearense sofreu para ter acesso à água. O período de criticidade exigiu adoção de uma série de medidas, mudança de comportamento e fez brotar, entre o chão rachado do Semiárido, um questionamento: o Estado está preparado para conviver com períodos de estiagem extremos?
Para o engenheiro civil com doutorado em Recursos Hídricos e professor da Universidade Regional do Cariri (Urca) e coordenador do Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT), Renato de Oliveira Fernandes, a resposta muda conforme o avançar dos anos. Se, em 2012, o Ceará não tinha ampla capacidade de lidar com a seca, atualmente, a resiliência está maior.
No Ceará tivemos avanços importantes para lidar com a seca nos últimos anos. Os avanços incluem melhorias nos sistemas de previsão climática, fortalecimento de instituições de pesquisa como a Funceme, e implementação de ferramentas de monitoramento da seca.
Ele destaca ainda outras ações realizadas ao longo dos anos como o "aumento da oferta hídrica com o projeto de integração do Rio São Francisco e as obras do cinturão das águas que facilitam a distribuição da/água no estado".
E para quem viveu na pele a falta de água há dez anos, o que mudou neste período? Quais os legados e aprendizados essa grande seca deixou? O Diário do Nordeste ouviu moradores das cidades mais atingidas por aquela estiagem. Eles rememoram o "sofrimento" de 2012 e contam como passaram a "olhar para água de uma forma diferente".
Essa mudança de visão, conforme avaliam os especialistas entrevistados pela reportagem, foi essencial para evolução comportamental tão necessária em uma região cujos volumes de chuvas tendem, historicamente, a ser abaixo da média. Os números corroboram tal análise.
Nas últimas cinco décadas, 30 anos fecharam com volumes inferior a 800.6 mm, com a piores médias em 1983 e 2012. O levantamento foi realizado peo Diário do Nordeste com base nos dados colhidos do portal da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme).
Esses anos destacados (2012 e 1983) apresentam os desvios negativos mais extremos, mas, a mesma série histórica mostra outros eventos secos severos como o ano de 1993 e 1998.
Cidades mais afetadas
A seca de 2012 afetou quase todas as cidades cearenses, com poucas exceções. Nenhuma delas registrou pluviometria acima da própria média, mas, 16 dos 184 municípios terminaram o ano com chuva acumulada acima dos 700 mm, volume considerado bom.
- Fortaleza,
- Farias Brito,
- Granjeiro,
- Cariús,
- Jucás,
- Iguatu,
- Ibiapina,
- Itapipoca,
- Aratuba,
- Pacoti,
- Palmácia,
- Pacatuba,
- Itaitinga,
- Maracanaú,
- Eusébio,
- Pindoretama.
Em todo o restante do território cearense, isto é, para 91% das cidades, a crise hídrica foi grave. Em 24 delas, foi especialmente severa. Esses municípios fecharam 2012 com precipitações abaixo dos 200 milímetros. A maioria dessas cidades se concentram na porção central do Estado.
Conforme a Funceme, uma combinação de fatores explica estes baixos índices nas regiões do Sertão Central e Inhamuns. "A localização e condições topográficas acabam influenciando a ocorrência e desenvolvimento dos sistemas meteorológicos que provocam chuvas e por consequência afetando a característica das precipitações observadas e dos volumes acumulados".
"Foi a pior seca que já presenciei"
Em Crateús, no Sertão dos Inhamuns, o acumulado ao fim do ano foi de apenas 241 mm, bem distante da média histórica que é de 722,3 mm. Quem viu de perto as duas maiores secas do Estado (em 2012 e 1983) afirma que a última, que agora completa uma década, "foi a pior".
"Trabalhei no combate à seca de 83, tinha uma equipe de quase 500 pessoas, então vivi de perto aquele momento. Foi muito sofrido, muita gente com dificuldade de acesso à água, mas acredito que esta [a de 2012] foi pior, morreu muito mais gado", rememora o hoje aponsetando José Nelson Sabóia, de 80 anos.
Ele, que há dez anos era fazendeiro e tinha um pequeno rebanho em sua propriedade, em Crateús, conta que chegou a perder mais de "20 cabeças de gado". Número pequeno em comparação com seus colegas. "Teve gente aqui que perdeu para mais de 300", completa o morador do Distrito de Monte Nebo, zona rural de Crateús.
Cenário semelhante foi vivido em todas as regiões do Ceará. O contador Antonio Alberi de Lima, de 58 anos, mantém uma pequena fazendo na zona rural de Ubajara, Município que fechou o ano de 2012 com volume acumulado 42,9% abaixo da média.
Dez anos depois da seca, ele confidencia os prejuízos. "Foi difícil demais. Era quase impossível manter o alimento e água para o rebanho. Até para consumo humano foi complicado. Só não perdi mais cabeças [de gado] porque passei a usar minha renda como contador para comprar capim e outros insumos", lamenta.
Os animais, no entanto, não foram os únicos afetados. A população também padeceu. Nelson lembra que muitos tiveram que comprar caixas de água para armazenar a pouca água que caía do céu e tantos outros foram "salvos por carros-pipas do governo". Alguns deles chegaram até a consumir água imprópria.
Quem tinha um "pouco mais de condição", completa o aposentado, "comprar água, era caro, mas não tinha outra saída: ou gastava o dinheiro que tinha ou esperava o caminhão-pipa chegar", diz. Para a agricultora Manuelita Gonçalvez, 53, moradora de Boa Viagem, cidade que choveu 74% abaixo da média em 2012, só lhe restou a segunda opção.
"Quando a seca bate a gente que vive da roça não tem outra saída. Sem colher nada, também não tem dinheiro. Então a gente só esperava os carros[pipa] chegarem e depois economizava para durar. Quando acabava, a gente pedia aos vizinhos. Aquele ano foi difícil. E os outros também. Demorou a chover bem", relembra.
Legado e lições
Diante tantas dificuldades que marcaram a vida de milhares de sertanejos, qual lição pôde ter sido extraído deste período de estiagem? Nelson Sabóia tem a resposta. "A gente ficou ainda mais forte e aprendemos a conviver com a seca", diz.
Esse aprendizado a que se refere passa por uma mudança - ainda que imposta - de comportamento. "Ninguém desperdiça mais água. Hoje o uso é muito mais consciente. Além disso, acho que as famílias estão mais preparadas, com a instalação de cisternas e, o governo, fez mais poços profundos, o que também ajuda muito", avalia o aposentado.
Alberi concorda. Na sua concepção, o longo período de estiagem vivido no Ceará "serviu para mudarmos alguns hábitos". "Passamos a valorizar ainda mais a água", pontua. Na concepção do professor adjunto do Departamento de Construção Civil da Urca, Renato Fernandes, embora exista relatos de mudança comportamental, é imperativo a adoção de ações de conscientização "para que a sociedade reconheça a água como um recurso cada vez mais escasso e que o seu uso racional deve ser além do período da seca".
Impactos severos
Conforme explica a Funceme, o volume de chuvas acumulado abaixo da média há dez anos ocorreu devido ao "resfriamento anômalo das águas do Oceano Pacífico, sendo observado na parte mais central do oceano equatorial e, além disso, o oceano Atlântico tropical permaneceu desfavorável ao posicionamento da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT)".
A ZCIT é o principal sistema indutor de chuva no norte do Nordeste no período de fevereiro a maio, caracterizado no Ceará como 'estação chuvosa'.
No entanto, os impactos causados pela seca de 2012 não se limitam àquele ano. Na avaliação do titular da Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará (SRH), Francisco José Coelho Teixeira, os danos hidrológicos, considerados "severos", refletem até os dias atuais. "Foi uma seca severa jamais registrada. E, para além disso, os anos seguintes também ficaram abaixo da média, o que agravou o cenário", relembra.
Os anos de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016 fecharam com volume acumulado abaixo da normal climatológica e, em 2017, o índice foi em torno da média, mas com chuvas irregulares e espaciais, isto é, longos períodos - dentro da quadra chuvosa - sem precipitações consideráveis e pluviometria bastante localizada, o que é ruim para a recarga dos açudes, bem como para a agricultura.
"Então, de um modo geral, do ponto de vista hidrológico, o Ceará viveu seis anos seguidos de seca. Atualmente ainda vivemos sob os efeitos dela", considera Teixeira. Como agravante, acrescenta o titular da SRH, "ainda não houve nenhum ano, após este período, como bastante chuva ao ponto de provocar uma inflexão da curva de armazenamento dos reservatórios".
O professor da Urca, Renato Fernandes, ressalta ainda que o problema da água no Nordeste brasileiro não envolve apenas a variabilidade das chuvas. Além de questões relacionadas ao volume de chuvas, o docente destaca que a região "apresenta subsolos cristalinos com baixa capacidade de armazenamento de água e altas taxas de evaporação que retiram grande quantidade de água dos reservatórios superficiais".
"Outras questões de perdas de águas estão associadas aos métodos de irrigação ineficientes e sistemas de abastecimentos de água urbanos com grandes perdas de água, que no Ceará é de 42% próximo da média nacional que é de 39,2%", acrescenta Fernandes.
Sucessivas quedas no armazenamento de água
Quando observado não mais apenas o índice absoluto de água acumulado ao longo do ano, mas sim os efeitos desta seca nos reservatórios, a janela de criticidade fica ainda maior. "Estamos detectando os efeitos da mudança climática. Mesmo em períodos bons (como foi em 2019 e 2020), as chuvas têm se comportado com mais irregularidade e espacialidade", diz Teixeira.
A irregularidade espacial e temporal na distribuição das chuvas é característico do semiárido nordestino, onde está inserido o estado do Ceará.
Reflexo disso são os últimos aportes. Segundo ele, entre 2012 e 2019 - ou seja, por oito anos seguidos - o Estado não recebeu aporte hídrico acima da mediana, que gira em torno de 4 bilhões de m³/ano. "Os últimos aportes significativos foram em 2004, quando o Castanhão encheu em apenas 40 dias; 2008 e 2009, com ambos os anos tendo que abrir as comportadas do Castanhão".
Desde então, quedas sucessivas, com raras exceções. No início de 2012, os 155 açudes monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) tinham 62% da capacidade total de armazenamento de água. Após o período de seca, entre 2016 e 2017, este volume caiu para apenas 6%.
No ano de 2020, as chuvas garantiram aporte de 5,9 bilhões de metros³ aos reservatórios, constituindo-se em uma significativa melhora (31% de armazenamento), embora ainda distante dos números de 2012. Hoje, o volume atual dos açudes monitorados pela Cogerh é de 21,31%.
Estratégias de convivência com a seca
Então, como sobreviver a tantos anos seguidos de estiagem? Francisco José Coelho Teixeira aponta o elo entre aplicação de ações estruturais e investimento em ciência como recurso para tornar o Estado mais resiliente. Ele rememora que, em 2015, teve início "um plano de ações emergenciais e estruturais para conviver melhor com a seca".
Nos anos seguintes, essa estrutura foi se fortificando. "Já tínhamos uma estrutura boa e passamos a ampliá-la. Assim como já tínhamos uma boa gestão hídrica e passamos a dar mais eficiente. Então, diante desses avanços, somado ao componente de ciência e tecnologia, que passa a fazer um prognóstico mais eficiente das chuvas, isso nos permitirá a conviver com os anos de estiagem", considera o titular da SRH.
Os períodos chuvosos, capazes de encher os açudes, serão cada vez mais esporádicos. E os períodos secos cada vez mais recorrentes.
Meteorologistas da Funceme endossam tal análise. Segundo o órgão, "as pesquisas dos cenários futuros indicam que regiões semiáridas estão dentre as mais vulneráveis às mudanças climáticas, ao mesmo tempo, as análises dos resultados dos modelos de cenários climáticos apontam que os extremos climáticos, como secas, tendem a ser mais frequentes no futuro".
Outra alternativa para ampliar a oferta de água no Ceará será a construção da usina de dessalinização de água do mar em Fortaleza, solução adotada por países com problema de escassez hídrica como Maldivas, Malta e Bahamas que suprem toda ou maior parte da demanda de água por dessalinização de água do mar, mas que apresentam uma população pequena quando comparada com o estado do Ceará.
No que se refere ao avanço tecnológico destacado por Teixeira, a Funceme acrescenta que há investimentos no "desenvolvimento e aprimoramento de modelagem numérica climática tanto para a avaliação desses cenários futuros, como o entendimento e previsão das condições oceânicas".
Ainda segundo o órgão cearense, avançar no conhecimento dos padrões subsazonais possibilita o detalhamento da distribuição das precipitações ao longo da estação chuvosa, "informação importante, especialmente, para a agricultura de sequeiro, já que a tomada de decisões nesse setor depende do conhecimento desse padrão temporal de chuvas".
Fernandes, professor da Urca e coordenador do Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) da Universidade, acredita que um conjunto de soluções podem minimizar os impactos das secas, "mas o seu uso necessita de considerações sobre características locais que estão além do clima, como a disponibilidade de água subterrânea, recursos financeiros para investir em tecnologias, densidade populacional, vocação econômica, governança da água entre outras".