Ter a liberdade de ser quem se é não é um dilema para quem se identifica com o gênero atribuído ao nascer. Afinal, a sociedade entende que a pessoa seja “menino” ou “menina” com base apenas no sexo biológico, mas essa regra não vale para pessoas trans. Elas enfrentam diversos obstáculos ao longo da vida, seja na própria família e nos espaços de estudo, mas vêm conseguindo driblar a rejeição histórica do mercado de trabalho.
Os dados sobre essa população, que deveriam embasar o desenvolvimento de políticas públicas, ainda são escassos. Só a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) garantiu, de junho de 2018 a dezembro de 2023, a retificação do nome e gênero nos documentos de 1.320 pessoas trans e travestis.
Atualmente, qualquer pessoa transgênero maior de 18 anos pode alterar o nome e o gênero na certidão de nascimento indo diretamente ao cartório, sem a necessidade de acionar a Justiça.
Em Fortaleza, um dos principais pontos de apoio a essa população é o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, serviço municipal criado em 2013 para proteção e defesa em situações de violência e outras violações/omissões. O espaço oferece Grupo de Apoio e Convivência para Travestis, Transexuais e Pessoas Não Binárias, orientações para retificação do registro civil, Cursos Profissionalizantes e outros eventos.
Para celebrar este Dia da Visibilidade Trans, o Diário do Nordeste traz as histórias de três cearenses que ocupam lugares de destaque tradicionais e difíceis de serem acessados: os consultórios de Medicina, os tribunais de Direito e as passarelas da Moda, provando que a capacidade de alguém não depende de sua identidade.
Ciência a favor da vida
Em junho de 2023, Liz Miranda enfim desabafou: era a primeira médica transgênera formada na universidade privada que cursou, em Fortaleza. Aos 25 anos, com registro do nome correto no Conselho Regional de Medicina, ela vivencia a rotina de qualquer profissional em unidades de saúde de Fortaleza e do interior. Inclusive, já recebeu chocolates de presente de uma paciente.
Ela me falou que eu era a melhor médica que ela já tinha ido. Na maioria das vezes, eu sou surpreendida de uma forma positiva. Tem pessoas que elogiam o meu trabalho, a minha coragem, a minha aparência. Eu não escondo de forma alguma, nem dos meus pacientes, nem dos meus colegas de trabalho, que eu sou trans.
Se hoje ela colhe os frutos da formação, precisa lembrar do caminho árduo que percorreu ao decidir fazer a transição, nos dois últimos anos de faculdade. Pessoas próximas se afastaram, a família torceu o nariz, se sentiu insegura no internato e até o primeiro diploma com o “nome morto” precisou ser corrigido.
“No início, teve um período em que eu ainda aceitava que não me chamasse de Liz. Só que em determinado momento, com uns 3 meses de transição, eu falei: ‘acabou’”. Dali para frente, era Liz, e apenas Liz, inclusive nos documentos oficiais porque, através do mutirão da Defensoria Pública, conseguiu retificar a certidão de nascimento e o registro geral.
Ser acolhedora é uma de suas diretrizes pessoais para pacientes trans com quem cruza, já que não teve apoio quando precisou. “Tenho professores e pessoas próximas que poderiam ter olhado para mim e dito: ‘olha, isso não é um problema, isso não é uma doença, isso é normal: isso é você”. A ciência, desse ponto de vista, acabou me fazendo entender que o que estava acontecendo comigo era um processo natural”.
“Às vezes penso que talvez eu seja a primeira mulher trans a passar por aquela situação, em determinado local, mas eu não vou ser a última. Eu tento muito não me envaidecer pelo fato de eu ser médica, e reconheço que é uma posição de privilégio, mas quero que outras cheguem também. Só precisamos de mais recursos para ter esse acesso”, finaliza.
Desfilando harmonia
Quando Isabella Poles ainda estudava numa escola estadual de educação profissionalizante, optou pelo curso de enfermagem por pressão da família. Porém, ela gostava mais de desenho e costura, e ao longo de todo o Ensino Médio se envolveu mais com as atividades da turma de Moda. Nos desfiles, ela se encontrava.
Ao concluir a formação básica, ela passou a buscar seleções em agências de modelo até que, em 2019, um booker - responsável por mediar modelo e cliente - se interessou por seu perfil. Naquele ano, ela estreou oficialmente numa passarela do festival DFB. Quatro anos depois, em 2023, ela chegou à Casa de Criadores, um dos principais eventos de moda de São Paulo.
Hoje aos 28 anos, Isabella trabalha como modelo e vendedora e não se vê fora desse mercado. Aliás, pretende ampliar cada vez mais suas capacidades. “Estou desenvolvendo minha primeira coleção de roupas e logo menos pretendo apresentar e entrar no mercado também da criação. Eu me interesso pelos bastidores e externalizo muitas ideias que quero colocar pra frente”, confessa.
No entanto, engana-se quem pensa que o mercado da Moda é isento de preconceitos. Isabella conta que já perdeu trabalhos por ser trans, além de tatuada e nordestina. “Sempre tem essa problemática em cima de um preconceito sobre nosso corpo trans, como se ele não se encaixasse na passarela da mesma forma que uma mulher cis”, pensa.
A modelo entende que a sociedade tem encarado a pauta com mais naturalidade, mas, em seu caso, também se questiona se isso ocorre por ela ter maior “passabilidade” - quando uma pessoa transgênero é percebida como cisgênero, ou seja, reconhecida pelo sexo atribuído no nascimento.
Eu nem gosto desse conceito porque reforça muito um padrão do que é ser feminino. Tenho esse privilégio de não sofrer tanto julgamento, mas acredito que outras mulheres trans sofram mais, como as pretas ou de periferia. Consigo perceber que tenho minha família próxima e várias coisas que a gente sabe que são tiradas de pessoas trans.
Isabella é clara: transgêneros não devem ser lembrados apenas no Dia da Visibilidade, mas precisam de atenção, empatia e cuidado durante todo o ano porque “é um público muito carente”.
Justiça para todos, todas e todes
O advogado Roberto Lima, de 45 anos, iniciou a transição dentro do Centro de Referência Janaína Dutra, em Fortaleza, onde trabalhou, já próximo aos 40 anos de idade. Quando jovem, explica, o desconhecimento generalizado sobre as questões trans o impediram de reivindicar a própria identidade, ainda que isso significasse um sofrimento constante e não tivesse a quem recorrer.
Hoje pós-graduado e estudante de Psicologia, ele advoga para outras pessoas trans - seu “público do coração” - e reconhece os privilégios aos quais teve acesso por ser um homem branco e de classe média.
“Todos os direitos das pessoas trans são precários. A gente vive uma cidadania precária, principalmente nosso direito à vida, um direito fundamental que toda pessoa tem que ter. A expectativa de vida para uma pessoa trans branca é de 35 anos, e para uma pessoa negra diminui para 27 anos”, lamenta.
Nem a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) o impede de sofrer transfobia no cotidiano. Mas, apesar de tantos desafios, pessoais, familiares ou institucionais, Roberto defende que “vale a pena lutar cada segundo”. Ele entende que, se está vivo hoje, é porque outras pessoas trans sacrificaram a própria vida no passado - apedrejadas e mortas como Dandara dos Santos - “por esse pequeno espaço de liberdade que nós temos hoje”.
O advogado também comemora que, aos poucos, e por intervenção, participação e educação de diversas entidades e movimentos sociais, o sistema Judiciário esteja mais sensível à pauta trans e venha emitindo cada vez mais decisões favoráveis a esse público, do nome social ao acesso a procedimentos de saúde.
“A gente não tem escolha nenhuma de não lutar. Nós fazemos parte da diversidade humana, mas se existe essa exclusão dos nossos corpos, temos que lutar para viver mesmo. E para romper com esse destino de as nossas vidas continuarem nesses lugares precarizados”, completa.