Pessoa não binária garante na justiça retificação de certidão de nascimento no Ceará

A ação da Defensoria Pública retificou a certidão de nascimento da pessoa que não se identifica nem com o sexo masculino, nem feminino

Uma pessoa não binária garantiu a retificação da certidão de nascimento no Ceará, após decisão do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). Através da assistência jurídica da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), Apollo Pereira de Sousa, de 31 anos, poderá ter um documento que contempla sua identidade de gênero.

No registro não irá constar "feminino" ou "masculino", porque essa identidade não se identifica com nenhum dos dois. 

Ao Diário do Nordeste, nesta quinta-feira (4), o nômade digital e analista de dados, que é natural de Mato Grosso, comentou que começou a ter contato com outras pessoas trans e não binárias em Fortaleza.  Receber a notícia da retificação traz um misto de felicidade, mas também de luta por direitos para a população LGBTQIAP+.

"Fiquei muito feliz que recebi essa notícia, que deu certo, vai sair a minha retificação. Não tô totalmente feliz ainda porque não está no mundo ideal. A gente ainda tem muitas lutas para correr atrás, mas estou feliz que já abriu precedentes. Então acho que vai 'rolar' de forma mais fácil, mais rápida a partir de agora, para as pessoas que já estão nesse processo de retificação e aguardando", contou Apollo.

Elu, pronome pelo qual atende também além de ele, iniciou o processo para modificação de nome e gênero em 2022, quando ainda morava em Fortaleza. Em outubro daquele ano, o Ministério Público do Ceará foi contrário a mudança de gênero, e a Justiça acatou apenas a alteração do nome, em agosto de 2023. A Defensoria recorreu da decisão e no último 26 de junho obteve a autorização para modificação no documento. 

"Desde criança, eu me questionava sobre a minha identidade de gênero e a minha orientação sexual, mas não tinha referências de outras pessoas não binárias. Tenho lembranças de aos 15 anos experimentar roupas que a sociedade dizia serem para homens. Mas eu não me sentia nem uma mulher cisgênero ou um homem trans. Cheguei a desenvolver depressão por conta dessa incongruência", relembrou Apollo.

Primeiro caso no Ceará

Em 28 de maio deste ano, pela primeira vez no Ceará, Brune Bonassi, de 31 anos, foi contemplada com a decisão que a garante uma nova certidão de nascimento que não constará "feminino" ou "masculino" no documento.

Diferente de pessoas cisgenêros, que podem ir direto ao cartório, homens trans, mulheres trans e travestis e pessoas não binárias precisam de apoio jurídico para modificar nome e gênero em cartórios. No Brasil, não há uma lei específica e cada caso é avaliado por um juiz, variando o entendimento de cada magistrado.

"A luta é para que a gente consiga nos outros estados também, são 27 estados no Brasil e só quatro ou cinco no máximo permitem a autodeclaração de pessoas não binárias. Então é um momento de muita alegria, assim, para a gente", disse Apollo. 

'Definir alguém pelo sexo biológico é algo ultrapassado'

Atuante no processo de Apollo, a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da DPCE, defensora Mariana Lobo, revelou que essa decisão abre mais um precedente para novas determinações favoráveis as pessoas não binárias. 

"A identidade de gênero, que é como eu enxergo a mim mesma, é uma construção social. Ou seja: definir alguém somente pelo sexo biológico ou pelos órgãos genitais é algo ultrapassado. O padrão imposto pela sociedade, de só existir o homem e a mulher, não se aplica mais ao mundo de hoje. Não resta dúvida de que as pessoas podem se identificar de outras formas. Isso precisa ser respeitado. Nossa Constituição diz que toda pessoa tem direito à identidade. E quem decide que identidade é essa é a própria pessoa, não o Estado", afirmou Lobo.

Ao Diário do Nordeste, Lobo relatou que a Defensoria atua em cerca de 10 recursos de pessoas não binárias no Tribunal de Justiça do Ceará, que foram rejeitados em primeira instância.

A defensora acredita que com o precedente favorável dos casos de Brune e Apollo há possibilidade dos casos sejam resolvidos ainda no primeiro grau da justiça.

"A gente entrou com vários processos em primeira instância, a gente espera que a primeira instância reconheça o direito constitucional de pessoas não binárias. É um reconhecimento da autodeclaração, porque através da autodeclaração que a pessoa tem refletido nos seus documentos quem ela é", disse.

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