Pânico, depressão e ansiedade: como a romantização da maternidade impacta a saúde mental de mulheres

Questões biológicas, de rotina e pressão sobre a maternidade podem se estender e exigem atenção à saúde

Ao se saber grávida da primeira filha, “aquele amor instantâneo” não arrebatou Kallyne de Sousa, 25. Mãe há 9 meses, a maquiadora hoje sabe: amor materno também é construção. Foi a primeira das muitas quebras de expectativa que atingiram em cheio a saúde mental – uma das mais afetadas pelas mudanças da maternidade.

Se por um lado a depressão pós-parto consta sob o código “F-53” na Classificação Internacional de Doenças (CID), os efeitos biológicos, da rotina e das pressões sobre as mães a médio e longo prazos - levando a outros diversos transtornos mentais - ainda são invisibilizados e invalidados.

O mês passado, então, além de maio das mães, foi o “maio furta-cor”, numa campanha para alertar a população sobre a causa da saúde mental materna: que sofre, principalmente, com os estigmas pregados socialmente.

“Romantizei e não soube lidar”

Kallyne, por exemplo, iniciou o acompanhamento psicológico desde a gestação, que não foi planejada. “Na gravidez, fiquei muito ansiosa. Já no puerpério, eu sentia mais que ansiedade: a pressão social em cima de como tem que ser a maternidade pra uma mãe de primeira viagem é muito pesada”, pontua.

Após o nascimento da primogênita, veio a estafa, resultado de um cotidiano de “péssimo sono e má alimentação, coisas que passam despercebidas, porque é muita coisa pra fazer”.

“No Natal, eu tive uma grande carga de estresse, fiquei 3 noites sem dormir, muito cansada com os cuidados da bebê e toda a rotina que ainda era muito nova. Tive uma crise de pânico e decidi intensificar a terapia, foi a melhor coisa que eu fiz”, relembra Kallyne.

Para a maquiadora, o ingrediente principal do adoecimento foi claro. “Essa sobrecarga é por causa dessa romantização em torno da maternidade. Eu romantizei e idealizei tanto que não soube lidar com a realidade”, reconhece.

Além dos conflitos internos, havia os sociais. “Tenho uma rede de apoio boa, mas dentro dela também tem um pouco de desserviço, as comparações. As pessoas de fora veem de um jeito, mas a gente que passa pela maternidade está dando o melhor com o que está aprendendo”, salienta Kallyne.

É preciso sempre se perguntar: e se fosse eu naquela posição, como iria agir? É muito fácil julgar sem nunca ter passado. Nenhuma mãe é igual, nenhum bebê é igual. Acolher é muito melhor do que julgar ou fazer esse desserviço com a maternidade. A mãe se perde, e acaba deixando de ser mulher, esposa, irmã, filha, e a terapia ajuda muito.
Kallyne de Sousa
25 anos

Como estratégia, então, a jovem olha para si. “Antes de ser mãe, eu gostava de ler, assistir a séries e filmes. Então, incluo isso na minha rotina materna. Vou continuar sendo mãe, mas sendo leitora, maquiadora, quem eu era antes”, sentencia.

“Perfeição materna é inalcançável”

Ghislayne Paiva, psicóloga clínica perinatal, destaca que, geralmente, “o problema começa ainda na gestação”. “A cada 4 gestantes, uma está depressiva. Ansiedade e estresse são normais no dia a dia, o que não é normal são altos índices disso”, inicia.

A “perda” da autonomia e a invisibilização de todos os outros papéis da mulher em função de um “principal”, o de mãe, são dois dos maiores fatores que prejudicam a saúde mental dela e a própria formação do vínculo com o filho, como frisa.

Agora ela é só mãe, não vai ser mais nada: a vida dela agora é gestar. A gestante não pode nem quer ser colocada numa bolha, mas ela é colocada à margem, ‘protegida’. É como se fosse uma hospedeira da criança.
Ghislayne Paiva
Psicóloga clínica

A psicóloga, que acompanha mulheres que buscam ajuda para lidar com os dilemas da gestação ao puerpério, reforça a importância de uma rede de apoio sólida – mas ressalta que familiares e amigos devem conhecer os limites dessa relação.

“As pessoas ficam procurando um ideal de perfeição materna que é inalcançável sem cooperativismo. Temos que saber o que é rede de apoio e de agouro: esta são as pessoas que vêm pra dar pitacos, fazer julgamentos. Reproduzir o que passaram nas suas gestações décadas atrás e que não se aplica para agora.”

“Nasce uma mãe e nasce uma culpa”

A assistente pedagógica Liliana Ripardo, 32, buscou atendimento psicológico logo quando descobriu a gravidez – desejada, sonhada, mas que só tinha 5% de chance de acontecer. “Por mais que eu e o pai quiséssemos e estivéssemos prontos, foi um choque”, afirma.

Com auxílio da terapia, de cursos e de grupos de apoio, Liliana aprendeu mais sobre o universo da maternidade – mas nem isso tornou a maternidade mais fácil. “Tentar estar bem é exercício diário”, como ela afirma.

Tudo bem não sorrir o tempo todo. A maternidade tem, sim, seus pesos. São estágios. Se eu não tivesse tido um apoio prático, das psicólogas, do meu marido, a minha maternidade não teria sido tão gratificante.
Liliana Ripardo
32 anos

Para ela, a culpa jogada sobre si pelos outros e por ela mesma foi o que mais pesou. “Desde o momento em que peguei minha filha nos braços era uma redoma de culpas sobre tudo. A gente sofre culpa interna e é muito culpada por outras pessoas”, frisa.

“Nenhuma mãe é melhor do que outra, somos as melhores pros nossos filhos dentro das nossas realidades. Se aquela mulher faz o melhor dentro da possibilidade dela, porque eu sou melhor? Temos que quebrar o círculo vicioso de eleger a melhor mãe”, completa Liliana.

Entre os cuidados com a bebê, então, intercala as próprias demandas. “Não sou só mãe, sou filha, esposa, mulher, trabalho fora. Tudo isso precisa ser alinhado numa rotina, com comunicação. Peço ajuda à minha rede de apoio, consigo fazer minhas coisas.” 

“A gente precisa disso. Não adianta abdicar de todos os outros papéis porque sou mãe: eu ganhei mais um papel, sou um ser fragmentado. Muitos acham que ser mãe a gente precisa abrir mão de um conforto, um lazer. Mas quem tem que determinar isso é cada mulher em cada situação”, acrescenta, afirmando que “até hoje” é questionada sobre não ter deixado o emprego para se dedicar somente à filha.

“Menos julgamento, mais acolhimento”

Para a psicóloga Ghislayne Paiva, a fórmula é simples. “A sociedade precisa ser mais empática com a mulher, desde o momento em que ela está com uma criança na fila do supermercado, do cinema, por exemplo”, ilustra. 

Outro passo recomendado pela especialista é ser prestativo: oferecer ajuda em vez de opinião. “Se a mulher acabou de ter um bebê, não opine sobre o maternar dela. Pergunte como ela está, do que precisa, leve comida, pergunte se pode arrumar a casa”, lista a profissional.

Por fim, há ainda uma quebra de tabu fundamental para fortalecer e cuidar da saúde mental materna: “a mulher precisa buscar ajuda, porque chegará um ponto que ela explode”. “Existe, por exemplo, o pré-natal psicológico, para tornar o desconhecido conhecido, e que os níveis de ansiedade, medo e tensão não a peguem de surpresa”.

Planejamento é fundamental

Além das questões socioemocionais, as próprias mudanças físicas impostas pela gestação, o puerpério e os primeiros meses de maternidade expõem a mulher a transtornos mentais. Os mais comuns são depressão e ansiedade, como destaca a médica psiquiatra e homeopata Lia Sanders, mas podem ser mais graves.

"Em termos de pós-parto, existe o blues puerperal, que não é uma doença, mas alterações de humor que atingem de 50% a 85% das pacientes cerca de 2 semanas após o parto. Também existe a psicose puerperal, que é mais rara, mas fala a favor de um transtorno afetivo-bipolar. É um período crítico", pontua a médica.

20%
é a taxa de depressão entre as mulheres que se tornam mães, considerando desde a gestação ao puerpério, segundo Lia Sanders.

As condições biológicas que envolvem o período gestacional "também deixam a mulher numa condição muito frágil do ponto de vista de saúde mental", como complementa a psiquiatra, que também é pesquisadora do Laboratório de Neuropsicofarmacologia do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM) da UFC.

Diante disso, é necessário que as mães, além de uma rede de apoio familiar, se planejem e se cerquem de profissionais como psiquiatras e psicoterapeutas, principalmente se já tiverem fatores de risco e histórico de transtornos de saúde mental.

"O que a mulher já tinha antes vai influenciar o que vem depois do parto. É preciso reforçar os atendimentos, suporte, ficar vigilante. Durante a gestação, ela recebe muita atenção, depois não. É preciso ficar atento a isso."