A unidade que abriga internos que têm doenças mentais e cometeram crimes no Ceará foi interditada parcialmente pela Justiça, na última quinta-feira (17). Na prática, a Corregedoria-Geral dos Presídios da Capital determinou que o Instituto Psiquiátrico Governador Stênio Gomes, conhecido como “manicômio judiciário”, em Itaitinga, não receba novos internos e assim tenha início o plano de fechamento da unidade. A ação segue uma norma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o judiciário e o Governo do Estado atuam para desativar, até maio de 2024, o local criado em 1968, e que hoje tem 110 internos.
Em tese, a unidade se destina a receber pessoas com transtornos mentais que cometeram crimes, mas devido à condição de saúde são considerados inimputáveis pela Justiça e, por isso, cumprem medida de segurança e não exatamente uma pena. Ou seja, o local é destinado a pessoas tidas como incapazes de responder judicialmente pela ação que praticaram por mais trágica que tenha sido a ocorrência.
Em maio, o Diário do Nordeste detalhou a decisão do CNJ que agora começa a ser efetivada no Estado. Ela deve ser aplicada em unidades do tipo em todo o Brasil. Na época, foi informado que o manicômio judiciário no Ceará tem prazo para fechar (maio de 2024) e órgãos do judiciário e do executivo debatem o futuro dos internos.
Na sexta-feira (18), o Diário do Nordeste entrou em contato com a Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização (SAP), para saber quantos internos estão na unidade.Segundo a pasta das 110 pessoas em medida de segurança no Stênio Gomes, 18 estão em condição de liberdade concedida (pessoas desinstitucionalizadas), mas sem destino social definido.
O cenário evidencia a complexidade da situação visto que os obstáculos para a desinternação do local são inúmeros. Esse procedimento é o foco na "segunda etapa" de execução da norma do CNJ.
A interdição do Stênio Gomes consta na portaria nº 05/2023, publicada no Diário Oficial da Justiça na quinta-feira (17). Na sexta-feira, além da SAP, o Diário do Nordeste entrou em contato com o Tribunal de Justiça (TJCE) e com a Defensoria Pública Estadual para saber, dentre outras informações, como será o fluxo no caso de futuras sentenças que imponha o cumprimento de medida de segurança a pessoas com transtorno mental no Ceará.
Mas, até a publicação desta matéria somente a SAP retornou informando alguns procedimentos apontados pela Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) para atuação nesse processo, tendo em vista que o contexto envolve justiça e também saúde.
Já o TJCE disponibilizou a portaria na qual consta que o cumprimento das determinações do CNJ deve ser observado nas seguintes situações:
- nas audiências de custódia;
- em casos de internos que demandam tratamento em saúde mental no curso da prisão preventiva ou outra medida cautelar;
- no cumprimento da medida de segurança;
Por que o Stênio Gomes foi interditado?
A interdição do Stênio Gomes segue a medida a ser adotada em todo o Brasil de fechamento gradual dos chamados “manicômios judiciários”, conforme determina a Resolução 487, de 15 de fevereiro de 2023, do CNJ.
No Brasil, a Lei Federal 10.216 de 2001, conhecida como “a Lei da Reforma Psiquiátrica”, determina que pessoas que tenham algum transtorno e cometam delitos não devem obrigatoriamente estar em presídios ou em casas de detenção.
O ideal, preconizado na Reforma Psiquiátrica, é que esses internos sejam submetidos a tratamentos de saúde e, quando necessária a internação, o recomendado é que seja na rede de saúde. Na prática, a interdição do Stênio Gomes tenta materializar esses princípios.
Mas, um dos gargalos para efetivar a decisão no Ceará são as distintas condições dos internos do Stenio Gomes. Em maio, o Diário do Nordeste mostrou que há situações em que a medida de segurança já foi cumprida, mas o interno segue no local; há casos em que a medida está em curso; e há ainda outras circunstâncias como condenados em regime fechado que estavam em outra unidades, mas que no decorrer do cumprimento da pena apresentaram algum problema de saúde mental e, por isso, estão na unidade.
Em nota enviada pela SAP na sexta-feira (18), há um posicionamento da Sesa, visto que situação une aspectos da justiça e também da saúde pública. A pasta informou que para dar conta do processo de desinstitucionalização dos egressos do Stênio Gomes há uma "proposta de pactuar junto aos municípios a ampliação de serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), assim como estratégias de inclusão social das pessoas egressas dos manicômios".
A nota não especifica datas, nem procedimentos específicos, mas informa que as principais pactuações buscam ampliar os leitos psicossociais nos hospitais gerais, que hoje somam 235; aumentar os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) tipo III; ampliar as Unidades de Acolhimento para Adultos em situação de vulnerabilidades sociais e também os Serviços Residenciais Terapêuticos, moradias para pessoas com sofrimento mental egressas de hospitais psiquiátricos .
Com a interdição, para onde irão os internos com perfil do Stênio Gomes?
O Diário do Nordeste questionou, além da SAP, o TJCE e a Defensoria Pública Estadual sobre fluxo a ser adotado diante da interdição do Stênio Gomes. Mas não obteve retorno para essa questão específica. A Resolução 487, de 15 de fevereiro de 2023, do CNJ estabelece as seguintes orientações:
No caso de audiências de custódia
Quando apresentada em audiência de custódia, a pessoa com indícios de transtorno mental identificados por equipe multidisciplinar qualificada, ouvidos o Ministério Público e a defesa, será encaminhada pela Justiça para atendimento voluntário na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
A RAPS é composta por serviços e equipamentos variados como: os Centros de Atenção Psicossocial (Caps); Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); leitos de saúde mental nos hospitais gerais, leitos de psiquiatria nos hospitais especializados e nos hospitais-dia atenção integral.
A norma diz ainda que “será priorizada a adoção de medidas distintas do monitoramento eletrônico para pessoas com transtorno mental”.
Nos casos em que a autoridade judicial substituir a prisão preventiva pela domiciliar, devem ser garantidos a possibilidade de “tratamento adequado na RAPS e o exercício de outras atividades que reforcem a autonomia da pessoa, como trabalho e educação”.
Internos que demandem o tratamento em saúde mental no curso de prisão preventiva
Nesse caso, a Justiça deve reavaliar a necessidade e adequação da prisão processual em vigor diante da necessidade de atenção à saúde, para início ou continuidade de tratamento em serviços da RAPS. No caso de pessoa solta, será reavaliada a necessidade e adequação da medida cautelar em vigor.
Da medida de segurança
Nos casos nos quais a Justiça impõe a medida de segurança, a autoridade judicial, diz a norma do CNJ, deve determinar a modalidade mais indicada ao tratamento de saúde da pessoa acusada, considerados a avaliação biopsicossocial, outros exames eventualmente realizados na fase instrutória e os cuidados a serem prestados em meio aberto.
Necessidade de tratamento em saúde mental no curso da execução da pena
Nessas situações, a Justiça deve avaliar a necessidade e adequação da prisão em vigor ante a demanda de atenção à saúde, para início ou continuidade de tratamento em serviços da RAPS, ouvidos a equipe multidisciplinar, o Ministério Público e a defesa.
O que acontecerá depois?
O impedimento de novas internações é o primeiro passo para efetivação da norma do CNJ. O segundo ponto é a desativação total da unidade. Para isso, no Estado, representantes do TJCE, da Defensoria Pública e do Governo do Estado, dentre outras entidades, como as da sociedade civil com o Fórum da Luta Antimanicomial, vêm discutindo e atuando juntos para resolver a questão.
Mas, para permitir a desativação total da unidade, é preciso:
- Que o poder judiciário revise os processos de cada interno para que seja avaliada a possibilidade de extinção da medida em curso;
- A progressão dos internos para tratamento ambulatorial em meio aberto ao invés da internação em manicômios judiciários;
- A transferência dos internos para estabelecimento de saúde adequado, como as residências terapêuticas;
- A ampliação da quantidade de residências terapêuticas, tendo em vista que no Ceará existem apenas 6, para o recebimento das pessoas que cumpriram a medida de segurança.
- Trabalho articulado de sensibilização das famílias que vislumbram ser possível o retorno dos internos para os lares;
- Estruturação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de modo a garantir atendimento e assistência aos internos que deixarem a unidade ou que recebam medidas de segurança.