Conhecer para preservar. A máxima de especialistas em patrimônio histórico e cultural é o motor de diversas entidades que buscam preservar, 200 anos depois, a memória de personagens cearenses que lutaram na Confederação do Equador. O movimento constitucionalista fracassou e a maioria de seus participantes foi morta, mas deixou uma base influente para o que se tornaria a República brasileira, algumas décadas depois.
Os mártires mais importantes no Ceará são homenageados em diversas ruas, avenidas, praças e escolas. Só nas adjacências do Centro de Fortaleza, há menções a Tristão Gonçalves, Bárbara de Alencar, Senador Alencar, Padre Mororó, Pereira Filgueiras e Pessoa Anta, entre outros - republicanos que contrastam com outras vias “monárquicas” do bairro, como a do Imperador, Pedro I e Princesa Isabel.
No entanto, apenas nomear espaços não é suficiente, se a importância dessas pessoas não for reconhecida. Em consulta básica com transeuntes nesta semana, o Diário do Nordeste verificou que não se sabe, popularmente, quem foram Carapinima, Mororó e Tristão, por exemplo. As placas estão lá; a memória, não. Nesta última reportagem sobre a Confederação do Equador, você conhece iniciativas do hoje para marcar a importância do movimento do passado.
Uma série de atividades para a celebração do Bicentenário da Confederação no Ceará começou em junho deste ano e deve se estender até abril de 2025, mês que marca a morte de Mororó e outros mártires. A iniciativa foi da Fundação Sintaf de Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico, Científico e Cultural (Fundação Sintaf), em parceria com o Instituto do Ceará, Governo do Estado e Assembleia Legislativa.
Neste mês, foi lançada uma exposição itinerante de 20 pinturas que contam, através das cores e traços, a história do movimento republicano no Ceará, com foco na heroína Bárbara de Alencar. A exposição iniciou no Memorial da Assembleia e ainda deve percorrer outros espaços.
Bárbara de Alencar: a primeira republicana
Talvez nenhum outro personagem ganhe tanta atenção hoje quanto Bárbara Pereira de Alencar. Nascida em Exu, em Pernambuco, ela constituiu família e negócios no Crato. Casou-se com o comerciante português José Gonçalves dos Santos, 30 anos mais velho, e teve cinco filhos, incluindo José Martiniano de Alencar e Tristão Gonçalves.
Por sua adesão à Revolução Pernambucana de 1817, que previa a libertação do povo brasileiro da exploração portuguesa, ela foi presa e torturada em uma das celas da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção, na capital cearense. Na cadeia subterrânea, passou três anos realizando trabalhos forçados. Por isso, é considerada a primeira prisioneira política do Brasil.
No entanto, para Luiz Carlos Diógenes, diretor de Cidadania, Inclusão Social e Cultura da Fundação Sintaf, ela foi “a primeira republicana”. Ativista pela República do Crato, ela tinha espírito crítico, instigou nos filhos a luta pela liberdade constitucional e enviou Martiniano ao Seminário de Olinda, à época “celeiro do ideário do liberalismo radical”.
Ela era uma pessoa dona da sua vontade, uma mulher que enfrentou o machismo da época. Uma heroína com muitos aspectos.
Após a prisão, ela se mostrou resiliente e, mostrando sua versatilidade empreendedora, conseguiu se restabelecer financeiramente. Porém, teve uma participação mais tímida na Confederação, embora apoiasse e financiasse o movimento. Perseguida até o fim da vida, Bárbara faleceu em 1832, em uma fazenda no Piauí, aos 72 anos. Seu corpo foi sepultado em uma capela católica no distrito de Itaguá, em Campos Sales, no sul do Ceará.
Por sua atuação marcante, ela foi inscrita no Livro de Aço dos Herois da Pátria, em 2014. Neste ano, o Ceará também sancionou a Lei Estadual 18.757, que criou o Dia Estadual da Heroína Bárbara de Alencar, agora celebrado em 28 de agosto.
“A contribuição da Bárbara é imensurável”, destaca Filomeno Moraes, cientista político e sócio do Instituto do Ceará. Ele lembra que, por seu perfil ousado, ela “acabou sofrendo uma repressão terrível, foi presa e humilhada”. A casa dela no Crato, onde ajudou a pensar as insurreições, foi destruída - bem como parte da memória da comerciante, vítima, segundo ele, de “misoginia historiográfica”.
Caminhos de Bárbara
Para reverter esse quadro, a Fundação Sintaf trabalha há quatro anos com a recuperação da identidade de Bárbara. O projeto original, “Lute como uma Bárbara”, iniciou com uma oficina de contação de histórias e pinturas para crianças matriculadas em escolas de Campos Sales e resultou em dois documentários. “A gente cansou um pouco de contar para os adultos”, afirma Luiz Carlos Diógenes.
Nós nos preocupamos com essa espécie de memoricídio, de esquecimento, de apagamento dos nossos herois e dessa heroína. Nossa tese é que isso tem um propósito de manutenção dessa desigualdade de gênero.
Porém, a entidade não quer ficar apenas no eixo educacional. No último mês de junho, foi lançado um novo projeto desmembrado do original chamado de “Caminhos de Bárbara”, uma rota turística e cultural que interliga diversos pontos por onde a heroína passou:
- Exu (PE): cidade da fazenda Caiçara, onde ela nasceu;
- Crato (CE): palco de vida e de lutas;
- Fronteiras (PI): a casa onde ela faleceu, na fazenda Alecrim, virou um museu, mas sob iniciativa privada mantida por parentes distantes;
- Campos Sales (CE): Bárbara foi sepultada no distrito de Itaguá.
Para não manter a abordagem somente nela, há possibilidade de cruzamento com outras figuras famosas na região que já possuem manifestações culturais, como Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré e Espedito Seleiro. Os próximos passos envolvem a realização de audiências públicas e sensibilização das Secretarias de Cultura das áreas envolvidas.
Além da rota, o projeto avalia a construção de estátuas da heroína; a restituição da verdadeira face de Bárbara, a partir de pesquisas históricas; e a reconstrução de sua casa no Crato, que funcionaria como memorial.
“Legalmente, a Bárbara é uma heroína, mas nos estranha o fato de ela não ser lembrada. E como não existe praticamente nada, há uma tendência de se perder o que ela significou, a luta dela”, finaliza Diógenes, para quem ela representa o símbolo do protagonismo de uma mulher sertaneja na luta contra opressões patriarcais.
A redescoberta de Tristão
Filho de Bárbara de Alencar, Tristão Gonçalves é outra figura que deve ser rememorada em breve. Eleito presidente da província do Ceará durante a Confederação, ele liderou os revoltosos em ações em diversas vilas para a derrubada da monarquia. Perseguido por forças imperiais, foi morto em outubro de 1824, com apenas 35 anos.
Por ocasião do centenário de sua morte, em 1924, o Instituto do Ceará criou um monumento no local onde ele teria falecido, no atual município de Jaguaretama. O marco foi coberto pela água quando o açude Castanhão foi construído, no início dos anos 2000, e reapareceu deteriorado quando o nível baixou por sucessivos anos de seca.
Para 2024, segundo o general Júlio Lima Verde, atual presidente do Instituto do Ceará, há um projeto de requalificação para revitalizar o monumento. Ainda em discussão, a iniciativa prevê a construção de um novo obelisco em local de melhor acesso à população - possivelmente, uma praça da cidade onde ele pereceu.
Pelo olhar da arte
Sem fotografias do período e com a maioria dos documentos incendiados em represália aos revolucionários, contar a história da Confederação pelas artes foi outro desafio abraçado pelo coletivo Calçada.20, formado por 22 artistas plásticos cearenses.
Ao todo, 22 telas compõem uma exposição comemorativa itinerante, iniciando pela Assembleia Legislativa do Ceará. O objetivo é promover reflexões sobre a importância da Confederação, seus espaços e personagens, no contexto das lutas libertárias que levaram à implantação da República no Brasil.
Segundo o pintor Francisco Ivo, cada artista fez sua pesquisa e utilizou sua percepção de mundo e de arte para a criação das peças - novamente, com foco em Bárbara de Alencar. “Todos os artistas praticamente trabalharam com esse sentimento da mulher de luta, de coragem e de emancipação, e a liberdade, a criação de um país livre das amarras que existiam unindo o Brasil a Portugal”, descreve.