Nos últimos dias, uma "mancha escura" e malcheirosa se formou em um trecho da areia da Praia de Iracema, cartão-postal de Fortaleza, e vem chamando atenção da população e de ativistas do meio ambiente por chegar até o mar. O material é oriundo de esgotos clandestinos na rede de coleta da água da chuva, um problema antigo na região.
Uma equipe do Diário do Nordeste foi ao local na tarde desta sexta-feira (3) e identificou o despejo no trecho conhecido como “Praia dos Crush”, na altura do Centro Cultural Belchior. Ainda nesta tarde, a Prefeitura realiza uma operação de limpeza na orla e de notificação de ligações irregulares na rede de drenagem da cidade.
No boletim de balneabilidade mais recente da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), publicado no dia 1º de novembro, a área da Praia dos Crush aparece como “imprópria” para banho.
Por lá, foram identificados resíduos ou despejos, sólidos ou líquidos, incluindo óleo, graxas e “outras substâncias capazes de oferecer riscos à saúde”, segundo nota do órgão, que recomenda evitar nadar ou praticar esportes náuticos “em locais com manchas de coloração vermelha, marrom ou azul-esverdeada”.
Em laudo emitido no dia 6 de outubro, o Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da UFC já havia indicado contaminação por esgoto no trecho. Os testes foram assinados pela professora Oscarina Sousa, coordenadora do Laboratório de Microbiologia Ambiental e do Pescado (Lamap).
“A situação específica da praia dos Crush é uma amostra do que acontece na nossa orla em relação à presença de águas contaminadas (esgoto) chegando à praia através de galerias pluviais, mesmo quando não há ocorrência de chuvas na cidade”, explica a especialista.
Segundo ela, o normal é que a chegada de água das chuvas, que lavam a cidade, seja direcionada para o mar via galerias. Porém, a presença de escoamento em períodos sem chuva são resultado de ligações clandestinas de esgoto ou vazamentos.
A Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) declarou que acompanha a situação, mas que o sistema de esgotamento sanitário da Capital “tem a sua operação sob a responsabilidade da Cagece”.
Nas redes sociais, o prefeito José Sarto também criticou a Companhia. Ao compartilhar imagens feitas pelo sistema de inspeção por vídeo das irregularidades em ligações residenciais e na rede de esgoto, ele apontou “irregularidades feitas pela Cagece”.
“Esse é um problema antigo que ressurge de tempos em tempos, mas em nossa gestão estamos tomando providências para resolvê-los de forma definitiva, com a ajuda da tecnologia. Os responsáveis serão notificados, com todo o rigor. Também determinei uma nova operação de limpeza de galerias pluviais e bocas de lobo, além da instalação de telas em todas as saídas de drenagem, para bloquear a sujeira”, escreveu Sarto.
Por sua vez, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) informou à reportagem que a ocorrência na Praia de Iracema “não tem nenhuma relação com o sistema de esgotamento sanitário da Cagece” e que é "inverídica" a divulgação realizada pelo prefeito. A empresa diz que não utiliza o tipo de tubulação vista no vídeo, mas um modelo mais espesso.
“Tratam-se de ligações clandestinas, interligadas de forma totalmente indevida à rede de drenagem, operada pelo município. Nesse caso, a fiscalização é de responsabilidade dos órgãos ambientais”, alega.
A Companhia relatou ainda que o sistema de esgoto que atende a Beira-Mar “encontra-se funcionando normalmente naquele local”. Mais tarde, a Cagece enviou nota oficial reforçando seu posicionamento. Veja o texto completo abaixo.
Atualização: Neste domingo (5), a Prefeitura de Fortaleza divulgou um relatório técnico elaborado pela Secretaria do Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma). Segundo o documento, "foram identificadas pelo menos 26 ligações indevidas da Cagece à rede de drenagem nas áreas da Praia de Iracema, Poço da Draga, e Riacho Maceió, no Papicu, conforme documento".
Ainda conforme a Seuma, foram percorridos 146 km de galerias pluviais. A partir desses dados, a Prefeitura informou que irá notificar as supostas infrações e aplicar multas, "dando prazo para correção".
Procurada novamente, a Cagece informou que não recebeu "nenhum relatório técnico" da Prefeitura. Mas, quando o documento for enviado oficialmente, ele "será avaliado" e a companhia "irá se pronunciar sobre o caso".
Problema se intensificou após chuvas
Há mais de duas semanas, o coletivo Nossa Iracema denuncia nas redes sociais a poluição na área. No entanto, o problema se intensificou após chuvas fora de estação no dia 1º de novembro. Entre as soluções emergenciais, o grupo propõe:
- Sucção de toda a água acumulada na região para tratamento no reservatório da Cagece e destinação correta;
- Limpeza emergencial da região;
- Fiscalização de ligações clandestinas para regularização e ligação à rede de esgoto do município;
- Verificação e conserto de possíveis vazamentos na rede de esgoto do município.
Já a longo prazo, sugere a instalação de rede de contenção de resíduos sólidos na saída da galeria para o mar, bueiros inteligentes, pinturas educativas e planos de educação ambiental e capacitação de comerciantes do entorno.
“Qualquer que seja a opção, medidas devem ser tomadas para garantir a segurança da população e por uma questão de respeito ao nosso mar. Não falta tecnologia nem gente preparada e com conhecimento para solucionar esse problema”, garante a professora Oscarina Sousa.
Como é feita a limpeza
Segundo a Seuma, para contribuir com a balneabilidade da orla de Fortaleza, a gestão municipal realiza um trabalho permanente de vídeo inspeção das galerias pluviais, identificando obstruções na passagem da água ou ligações clandestinas de esgoto.
Até 15 de outubro de 2023, mais de 580 toneladas de resíduos foram retirados, num total de 146 km de galerias pluviais percorridos.
Denúncias e multas
Todos os imóveis servidos por rede pública de esgoto em Fortaleza devem ser interligados à referida rede, sob pena de autuação pela infração prevista no Art. 944 do Código da Cidade.
Caso a ligação do esgoto seja direcionada às galerias de águas pluviais ou a qualquer corpo d'água sem o devido tratamento, o responsável estará sujeito a aplicação de penalidades.
De 2022 a setembro de 2023, a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) realizou 3.371 fiscalizações em relação a denúncias de imóveis não interligados à rede de esgoto, e emitiu mais de 1.500 documentos fiscais relacionados ao tema, incluindo notificações e autos de infração.
Poluições anteriores
A poluição na Praia de Iracema e Beira-Mar de Fortaleza é denunciada há mais de uma década pelo Diário do Nordeste. Em 2010, a então Secretaria do Meio Ambiente e Controle Urbano (Semam) já reconhecia que algumas redes de esgoto clandestinas acabam desembocando na praia e sangram para o mar.
Em agosto de 2014, de acordo com moradores da região, um esgoto foi derramado na mesma praia, na altura do espigão da Rua João Cordeiro. Conforme os relatos, a área estava imprópria para banho e havia um forte odor.
À época, uma galeria de drenagem foi danificada, e Seuma e Cagece atuaram juntas na resolução. A Companhia disponibilizou dois caminhões para bombear o esgoto da rede de drenagem para a rede correta, a fim de evitar que a sujeira continuasse a chegar ao mar.
No ano seguinte, 2015, uma mancha de esgoto voltou a sair de uma galeria de água pluvial, na altura da Avenida Barão de Studart. A Cagece recomendou que as pessoas não coloquem lixo nas tubulações, para evitar que fiquem obstruídas.
Já em 2020, a requalificação da Beira Mar trouxe à tona cinco ligações clandestinas na rede de esgoto na orla, entre o Mercado dos Peixes e a Rua Joaquim Nabuco. Apesar de corrigir o problema, a Prefeitura não informou os responsáveis pela infração.
Nota da Cagece
A Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) informa que são falsas as informações publicadas nesta sexta (03), nas redes sociais, pelo prefeito de Fortaleza, José Sarto. A Cagece esclarece que não há nenhuma irregularidade nos sistemas de esgotamento sanitário da região da Beira-Mar da capital, que estão funcionando normalmente.
A companhia informa ainda que as imagens mostradas no vídeo, publicado no Instagram, não retratam nenhum sistema da Cagece, mas sim uma galeria de drenagem de águas pluviais, contendo interligação clandestina da própria população de Fortaleza. Cabe destacar que esses sistemas são operados pela gestão municipal e que a fiscalização dos mesmos é de responsabilidade da Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) e dos outros órgãos ambientais. Caso haja interesse da Prefeitura de Fortaleza, a Cagece poderá firmar parceria com o órgão para realizar fiscalização, operação e manutenção das galerias pluviais.
Na oportunidade, a companhia faz o alerta sobre a importância da correta interligação dos imóveis às redes de esgotamento sanitário, como forma de garantir o transporte adequado do esgoto doméstico, sem causar prejuízos ao meio ambiente e a própria população.