Praia de Flecheiras, Trairi, Litoral Oeste do Ceará. A Escola Municipal Mestre Sabino, localizada em um dos cartões-postais do Estado, recebeu no fim de agosto uma iniciativa abrangente para descartar corretamente até 90% do lixo gerado pelas atividades diárias, incluindo coleta seletiva e reaproveitamento de alimentos para gerar gás e fertilizante.
Ao todo, 464 estudantes do Ensino Fundamental da região de Flecheiras e Guajiru, funcionários e corpo docente devem se tornar multiplicadores da ideia que tenta, de forma prática, minimizar os impactos de resíduos sólidos sobre o meio ambiente litorâneo.
Para conhecer esse esquema cuidadosamente pensado, o Diário do Nordeste percorreu 144 km de Fortaleza a Trairi para a 7ª reportagem da série “Mar de Leva e Traz”, em que são entrelaçadas as memórias e os diferentes usos do litoral.
O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.
Todo o processo foi idealizado pelo Instituto Dharma e aplicado através da expedição Downwind Solidário, que leva ações de medicina, educação e sustentabilidade a comunidades remotas do Brasil, com patrocínio da Soul Nordeste e Deeplab Project. Em 2022, ela já havia contemplado a Escola João Jaime, no distrito de Curral Velho, em Acaraú, que se tornou a primeira Escola Lixo Zero do Nordeste.
Segundo André Comaru, representante do Instituto Lixo Zero e coordenador de Sustentabilidade do Instituto Dharma, a meta é desviar 90% pelo menos de todo resíduo produzido na escola - como papel, plástico e alumínio - do lixão do município.
O planeta hoje vive um momento de urgência, e a gente precisa fazer uma mudança radical e rápida. Pessoas de todas as idades precisam acessar essa informação, mas quando trabalhamos com a criançada, a gente está garantindo que as próximas gerações vão tomar decisões mais acertadas.
A instalação de um biodigestor é o primeiro passo para a certificação Lixo Zero. O aparelho de grandes proporções transforma restos de comida em gás natural capaz de abastecer a cozinha da escola e ainda gera um subproduto: um fertilizante natural que pode ser utilizado na horta ou no jardim.
A outra frente é a conscientização sobre o descarte de resíduos recicláveis sólidos, pela qual os membros da escola devem separar os itens por material. O município, por meio da Secretaria de Infraestrutura, recolherá os sacos e os levará até a Associação de Catadores de Recicláveis Sol Nascente, evitando assim o descarte no lixão. “A gente diminui esse circuito e transforma isso em economia circular”, explica Comaru.
Década do Oceano
A preocupação dos voluntários é que o lixo urbano chegue até o mar. Para se ter uma ideia do problema, hoje, o oceano é prioridade máxima da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabeleceu a Década do Oceano entre 2021 e 2030.
Os principais inimigos da poluição marinha são os plásticos e microplásticos, produtos de alta durabilidade com efeitos catastróficos na fauna marinha. Alguns animais ficam presos neles, outros os ingerem dentro de sua cadeia alimentar.
Ao todo, a Década estabeleceu 10 desafios objetivando a identificação, redução ou eliminação das fontes de poluição e a proteção dos ecossistemas marinhos:
- Compreender e vencer a poluição marinha
- Proteger e restaurar ecossistemas e biodiversidade
- Alimentar de forma sustentável a população global
- Desenvolver uma economia oceânica sustentável e equitativa
- Desbloquear soluções baseadas no oceano para as alterações climáticas
- Aumentar a resiliência das comunidades aos riscos oceânicos
- Expandir o Sistema Global de Observação do Oceano
- Criar uma representação digital do oceano para melhor estudá-lo
- Assegurar conhecimentos e tecnologia sobre o oceano para todos
- Mudar a relação da humanidade com o oceano
Nesse sentido, pondera André Comaru, é preciso agir localmente e pensar globalmente. “O bacana de trabalhar na escola é que ela vai fomentar a iniciativa para o município e, quem sabe um dia, a gente tenha Trairi com um processo de coleta seletiva no município todo”, espera.
Se depender da nova geração, essa vontade já é real. Kamily Paulo, 14, aluna do 8º ano e presidente do Grêmio Estudantil da escola, garante que muitos alunos já participam de um projeto chamado “Praia Viva Ruan”, que promove a limpeza da praia toda quarta-feira.
“São muitas sacadas depois de eventos que as crianças juntam”, lamenta. “Vem muito pirulito, plástico, cigarro, garrafa. As pessoas não se conscientizam de jogar aquilo na praia e deixam até mesmo o ambiente para elas conviverem sujo”.
Para a jovem, a certificação Lixo Zero é uma alegria por se alinhar à defesa do lugar onde eles moram. Ela também cobra comprometimento com a iniciativa: “espero que as pessoas levem isso a sério para que a gente possa desfrutar, no futuro, do que está sendo feito aqui hoje”.
Como funciona o biodigestor?
Rui Oliveira, gestor ambiental e responsável por instalar o biodigestor na escola, deu mais detalhes sobre o equipamento. Primeiro, ele é cheio com milhares de litros de água para favorecer a decomposição anaeróbia, ou seja, sem a presença de oxigênio.
Qualquer alimento, exceto ossos de grandes dimensões e frutas cítricas, podem ser depositados na “boca” do biodigestor. Os ossos podem demorar a serem decompostos, já a acidez cítrica pode matar as bactérias responsáveis pelo processo.
O bocal deve ser bem vedado para evitar a disseminação dos maus odores da decomposição. Com o tempo, começam a ser produzidos gases para encher um tanque específico. De lá, são canalizados até um fogão especial na cozinha, para o qual podem dar autonomia de até 7 horas por dia.
Como o biodigestor é feito de material escuro, absorve mais calor e acelera a decomposição. Em paralelo, os restos de comida se transformam em fertilizante líquido, que fica armazenado em uma bombona e pode ser aplicado em árvores e gramados. Em resumo, o biodigestor gera energia limpa sem eletricidade e ainda trata adequadamente os resíduos orgânicos.
Cuidados no dia a dia
O tema da sustentabilidade já é tratado nas atividades de rotina da escola, conforme o diretor Raimundo Mendes. O projeto “Vamos cuidar da escola - eu cuido, tu cuidas e nós vivemos”, por exemplo, define cuidados com jardinagem, plantas medicinais e hortaliças dentro da própria unidade.
Como a praia é um recurso natural próximo, a gestão também realiza visitas e limpeza no entorno para fixar conteúdos dos recursos didáticos. “Estamos num ambiente que precisamos cuidar. O ambiente limpo e saudável atrai o aluno e deixa tudo bem mais prazeroso na aprendizagem”, pensa Raimundo.
Para o diretor, a certificação construirá nos alunos uma consciência mais cidadã e ecológica, permitindo novas vivências mais aprimoradas. “Já temos coleta seletiva, mas na lixeira maior fora daqui, mistura tudo. É um hábito que ainda não tem um fim. Agora, com certeza, vamos dar um destino melhor para o lixo e a natureza vai agradecer”.
André Comaru ressalta que a implantação do projeto gera uma transformação social a partir da base e se torna mais significativa porque deixa um legado. No discurso direcionado às crianças da unidade de ensino, ele pediu engajamento:
“Temos que tomar conta da nossa casa. Nosso planeta tá muito dodói e precisa da nossa ajuda. A tartaruga não gosta de plástico, nem o golfinho, nem o polvo, nem o peixe. Por isso, a gente tem que tomar conta da nossa praia e do nosso oceano. Quem tá a fim de ser o super-herói do planeta? Posso contar com vocês?”
“Sim!”, foi a resposta.