Os quase 300 milímetros de chuvas acumulados pelo Ceará em março, superando a média esperada, geram um dilema no peito do cearense: comemorar a fartura d’água ou lamentar os transtornos que ela tem causado?
Com um relevo que vai de serra a depressão, o Estado enfrenta, neste mês, uma situação de calamidade de proporção inédita na história recente, com centenas de famílias que perderam objetos, casas e até vidas pela força da água. O cenário faz até crer na canção: “o sertão vai virar mar”.
O Diário do Nordeste conversou com especialistas para entender que fatores potencializam as enchentes, deslizamentos e até os desabamentos registrados no Ceará, e por que o Estado tem sido tão atingido pelos efeitos das chuvas em 2023.
Chuvas excepcionais
Um fator parece óbvio, mas é determinante: as fortes chuvas deste ano são exceção, e as cidades não estavam preparadas para recebê-las. A análise é de Assis Souza Filho, professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O especialista, que é cientista-chefe em Recursos Hídricos da Fundação Cearense de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), observa que o Estado intercala “extremos de seca e de cheia” – mas ainda não sabe agir quando “sobra” água.
Precisamos de mecanismos de planejamento para antecipar as possibilidades e agir de forma mais rápida. No Ceará, temos uma ocorrência de precipitações muito variada no tempo. Com a seca, já avançamos muito, temos planos. Precisamos avançar agora na gestão do risco de cheias.
Assis explica que a própria construção de reservatórios “como saída para ter água no sertão” vem associada a riscos: como o extravasamento de açudes, por exemplo. Tudo isso, aliado ao crescimento desordenado das populações, desenha um cenário fértil para as tragédias em período chuvoso.
“A geologia cristalina do Ceará e a variabilidade climática forçaram a sociedade a uma necessidade de adaptação. Então, quando há chuvas excepcionais, muito intensas em determinado lugar, geram uma carga maior nas encostas, pondo as pessoas em risco”, destaca.
Questões sociais
A ocupação “das bases dos rios” sem um zoneamento adequado, avalia o professor, reflete fatores sociais e econômicos até da capital. “Em Fortaleza mesmo, a margem do Rio Cocó foi totalmente ocupada. Mas temos a barragem do Gavião, que controla o rio e reduz o impacto das cheias.”
Já nos municípios do interior, o baixo preço dos terrenos às margens de rios e açudes e a proximidade dos centros faz com que justamente essas áreas com risco de inundações e deslizamentos sejam as mais procuradas pela população vulnerável.
Esse é um problema de crescimento das cidades. A ocupação dessas regiões acaba tendo grandes efeitos nas cheias, porque o rio quer recuperar sua calha. E há muitas perdas: tudo o que a família acumulou ao longo dos anos é levado pelas cheias.
As perdas acontecem não apenas em enchentes, mas em outro fenômeno recorrente nas regiões serranas cearenses, neste mês: os deslizamentos.
Sandra Baima, doutora em Engenharia Civil e professora do campus de Russas da UFC, explica que deslizamentos em encostas “são um processo natural”. O problema é quando há ocupações irregulares nas proximidades.
“O problema são as ocupações irregulares das populações em áreas sujeitas a deslizamento, um número cada vez maior de pessoas”, observa a professora.
Na região serrana de Itapipoca, por exemplo, a reportagem visitou comunidades assoladas pelos efeitos das chuvas: a maioria alocada em casas construídas de forma improvisada, à beira de rios ou “ao pé” de morros e encostas. Todas sob alto risco e “sem ter para onde ir”.
“O maior problema são as cheias”
Os dois principais problemas decorrentes das fortes chuvas no Ceará são as enchentes e os deslizamentos, estes mais localizados, como pontua Flávio Nascimento, professor de Geografia da UFC e pesquisador do Laboratório de Climatologia Geográfica e Recursos Hídricos.
Ele aponta, porém, que a principal preocupação são as inundações, “porque estão nos 4 cantos” do estado – e sequer são “lembradas” pelas pessoas como fenômenos possíveis, “já que o Ceará é muito seco”.
As pessoas não têm essa memória climática de que choveu-inundou. Tanto que temos relatos de pessoas que moram há 30 anos nos locais e nunca viram o que estamos vendo agora. Não se observa que as cidades se desenvolvem próximas às planícies dos rios.
Flávio sugere o fortalecimento de políticas habitacionais e a fiscalização de construções irregulares, “cujas faltas só são notadas no período chuvoso”, como medidas indispensáveis para lidar com os efeitos dos fenômenos naturais: que devem ser cada vez mais frequentes e intensos.
“Em função das mudanças climáticas, os eventos extremos estão muito mais concentrados e frequentes; chegando ao ponto que vimos no Sertão Central e no Cariri: o maior desastre natural de chuvas já causado no Ceará”, opina.
O Ceará tem problemas relacionados a secas, não a inundações. Estas acontecem a cada 30-35 anos. Mas, daqui pra frente, a tendência é de que tenhamos esses quadros se repetindo com mais frequência. E quando vierem secas, serão mais severas.
Se hoje o sertão virou mar, então, amanhã o mar pode virar sertão.
Monitoramento e prevenção
O geógrafo Flávio Nascimento alerta que tanto áreas rurais como urbanas estão suscetíveis às enchentes e outros efeitos das fortes chuvas, mas que o interior cearense padece de maior vulnerabilidade.
Entre as ações necessárias para conter os impactos da quadra chuvosa, ele lista:
- Restauro de barragens no período de seca;
- Fortalecimento de estradas, pontes e vias de acesso;
- Sistema geotécnico de contenção de encostas, “coisa que não temos no Ceará”;
- Políticas sérias de ordenamento territorial, “definidas com boas políticas habitacionais e planos diretores”.
Um dos órgãos mais importantes de proteção e prevenção de desastres no Estado é a Defesa Civil, ligada ao Corpo de Bombeiros Militar do Ceará. De acordo com o coordenador, o capitão André Sousa, as regiões com mais riscos ficam nas zonas rurais do Sertão Central e do Cariri.
Além de orientar, o gestor reforça que o órgão tem atuado junto aos municípios (alguns com Defesa Civil local) solicitando limpeza de canais e vistorias nas áreas em que as residências estão vulneráveis ao desmoronamento de encostas.
Para Flávio Nascimento, a Defesa é importante “para identificar e mapear as áreas de risco de inundações no sertão e de deslizamento nas serras, e sinalizar pontos mais suscetíveis para que os órgãos possam trabalhar em termos de políticas”.