Adrielly Oliveira, de 9 anos, bateu na porta da direção da Escola Municipal Paulo Sarasate, no Demócrito Rocha, para fazer uma negociação: “tia, quer comprar trufa?”. A iniciativa veio a partir das aulas do programa Jovens Empreendedores Primeiros Passos (JEPP), que ocorrem em 320 unidades estudantis da rede pública de Fortaleza.
De touca na cabeça, ela mostra os doces, bolos e biscoitos feitos pela mãe. "Quero ser médica e continuar fazendo bolos", fala com determinação, apesar da pouca idade, sobre os planos para o futuro. Como ela, 140 mil estudantes da rede pública aprendem como o empreendedorismo pode ser ferramenta para enfrentar desigualdades sociais.
Esta é a 2ª reportagem da série especial Sala de Futuros, que mostra como políticas públicas de educação em Fortaleza podem contribuir para efetivar direitos básicos e mudar a trajetória de vida de estudantes e suas famílias, reduzindo desigualdades e segregações por contextos de saúde ou renda.
O JEPP funciona em 320 unidades de ensino, de escolas municipais a instituições parceiras, como os Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas), na parceria entre Secretaria da Educação de Fortaleza (SME) e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). O público vai de 6 a 13 anos, além de alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
As aulas de empreendedorismo funcionam no contraturno das escolas de tempo parcial ou dentro das atividades de quem estuda em tempo integral. O conteúdo dos livros avança conforme a faixa etária
O objeto não é, necessariamente, criar o próprio negócio. Mas sim treinar o olhar das crianças e adolescentes para oportunidades de empreender, de organizar as finanças e planejar o futuro. Ao final de cada ano escolar, são organizadas feiras para divulgação e comercialização dos produtos feitos pelos alunos.
Gildazio Rodrigues, gerente da Célula de Tempo Integral da SME, explica que o currículo ampliado leva para as famílias sugestões práticas para tirar crianças e adolescentes da vulnerabilidade.
“Essa parceria com o Sebrae, que entra com o material e formação, e o Município, com toda a logística e os profissionais para a aplicação, a gente já sente os avanços", frisa.
Fortaleza é a capital que tem maior número de atendidos nesse projeto e o propósito é desenvolver as competências empreendedoras dos alunos, visualizar as oportunidades e ajudar as famílias a proporcionar uma cultura de cooperação, inovação e protagonismo.
Parceria de mães e filhas
Adrielly tem uma timidez evidente, mas isso não é uma barreira para a menina abordar os colegas e professores do 3º ano do ensino fundamental ao vender as trufas por R$ 2 desde o início de 2023. Se não estiver com dinheiro, pode ser pelo PIX. E, assim, em ela consegue comercializar quase 10 doces por dia.
Ela ainda estava na barriga quando a mãe Geila Oliveira, 40, encontrou nos bolos uma forma de garantir o sustento. Tudo sai da própria cozinha direto para a casa de quem encomenda, mas a ideia é, no futuro, ter uma loja física. Independentemente disso, as duas já são parceiras.
Eu não podia trabalhar quando ela era menor, e já tinha outra filha pequena e não tinha com quem deixar elas, e comecei a fazer bolos, fiz cursos. Para não ficar sem meu dinheiro, pensei em algo para isso.
"Eu fiquei surpresa, porque as crianças de hoje não ligam muito para essas coisas (de trabalho), e ela já tinha essa vontade: 'mãe, me ensina a fazer bolo'. Eu dizia pra ela ter calma, mas colocava os equipamentos e ia espatulando e fazendo os trabalhos de bico", lembra Geila.
A autônoma Ana Karine Teixeira, 34, também cuida de uma criança atenta às lições de empreendedorismo. Nas últimas férias, viu uma estratégia usada por ela na juventude ser revivida pela filha Cecília: a confecção e venda de bijuterias.
"A avó dela deu vários pacotinhos, eu incentivei e comprei outros materiais e ela pediu para vender. Ela se empolga muito e quer vender na rua, mas eu digo que sempre tem de estar comigo, que sou adulta", lembra.
Ana Cecília Teixeira, de 8 anos, sonha em ser veterinária para "cuidar dos animais doentinhos" e aprende sobre o valor do trabalho ainda pequena. "Eu já quebrei o meu cofrinho e comprei várias coisas que eu queria, da próxima vez eu vou encher e vou comprar um presente para o meu irmãozinho que vai nascer”, detalha Cecília sobre o uso do lucro, ainda que pequeno.
Grande mesmo é o aprendizado que deve levar para a vida, como reflete a mãe. "Eu digo que de pequena é que ela vai aprender o valor do dinheiro e do trabalho. Eu sempre trabalhei para criar ela, então quero que ela cresça vendo que a mulher pode ter o próprio dinheiro". Já o sonho da mãe é um futuro mais igualitário para a pequena. “Eu já passei por muitas coisas e a Cecília é um presente para mim”, conclui.
Negócio de criança?
O monitor escolar Mateus Lima, 22, separa 40 minutos, duas vezes na semana, para levar as atividades do JEPP aos pequenos da Escola Municipal Paulo Sarasate. A tarefa é parte das aulas de Educação Patrimonial.
“A gente coloca ideias e o que está no contexto dos livros para que eles possam trabalhar com a criatividade. Quando temos um tema sobre natureza, levamos eles para a horta da escola e eles veem como funciona na teoria e na prática”, explica.
Algumas crianças, como Adrielly, se destacam por terem o exemplo de empreendedorismo na família. “Vamos avaliando esse perfil e eles não sabem o caminho, mas estamos aqui para orientá-los por meio do JEPP”, completa Mateus.
Contudo, de modo geral, os estudantes se engajam nas atividades, principalmente por associar o tema ao brincar.
“Eles sugeriram brinquedos que abrem e fecham, cofres de garrafa PET, eles trouxeram a ideia e confeccionaram. A gente nota que o desenvolvimento deles está acima do que a gente esperava”, completa o monitor.
O Ceará possui 98 municípios com o JEPP, sendo Fortaleza a cidade com maior número de estudantes, e há perspectiva de ampliação do projeto, conforme Mônica Arruda, gerente da unidade de Cultura Empreendedora do Sebrae. Para isso, os professores e monitores da cidade passam por formação e consultoria para replicar o conteúdo entre os estudantes.
“O objetivo é desenvolver competências empreendedoras desde a fase inicial, não para abrir negócios, mas para perceber oportunidades, desenvolver autonomia, protagonismo e comunicação, que são competências que a base curricular exige das escolas”, completa Mônica.
Os estudantes recebem conhecimento e treinam habilidades relevantes não só no empreendedorismo, mas para o mercado de trabalho de um modo geral. Independente da área, seja robótica ou artística, as crianças e adolescentes formam uma base sólida com o JEPP. “É um tema transversal, que pode ser trabalhado com a matemática e ciências, mostrando na prática como aqueles conteúdos podem ser adotados. No Ceará, devemos impactar 340 mil alunos neste ano”, ressalta.
Fora da sala de aula
Na Escola de Tempo Integral (ETI) Leonel de Moura Brizola, no Planalto Ayrton Senna, os resultados do JEPP também foram parar nas redes sociais. Além da venda no intervalo de aulas, estudantes montam lojas online.
Natanaele Rodrigues, 14, está no 8º ano do ensino fundamental e resolveu divulgar na internet as pulseiras que fabrica.
"Eu aqui eu aprendi mais sobre empreendedorismo através do JEPP, me inspirei muito na sogra do meu irmão que vendia doces e eu não trabalho sozinha: minha cunhada me ajuda e me incentiva", completa. O trabalho começou neste ano e já dá orgulho aos pais.
Em meses com boas vendas, o somatório chega até R$ 150. "Eu organizo no mês o que apuro, tiro o valor dos materiais e o meu lucro. Eu invisto em coisas que eu preciso, que nem sempre minha mãe tem para pagar", completa a adolescente.
Ana Luiza Alves, 13, diz que o empreendedorismo “está no sangue” e lembra de vender caderninhos, os quais personalizava com adesivos, aos 8 anos. Depois migrou para o bolo de pote, passou para os ovos de páscoa até que precisou suspender tudo na pandemia.
Com o retorno das aulas presenciais, decidiu investir nas bijuterias que vende a partir de R$ 3. Ela se planeja, inclusive, para montar uma barraca com os produtos em um lugar estratégico do bairro com circulação intensa de pessoas.
"Minha mãe viu que eu queria muito e me deu R$ 100, que eu comprei de material. Comecei só com pulseiras, depois colares e hoje tenho uma loja virtual. Sempre fui inspirada pela minha mãe que tem uma lanchonete e sempre gostei de ser empreendedora", destaca.