Deixar a terra natal para viver em outro país, com uma cultura diferente e muitas vezes precisando aprender uma nova língua, é um processo repleto de desafios. Em meio a uma pandemia, os obstáculos são ainda mais acentuados para quem chega em situação vulnerável. Foi nesse contexto, no auge da Covid-19, que surgiu o programa de extensão “Vidas Cruzadas: Migração, Saberes e Práticas”, da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Naquele momento, a professora Denise Bomtempo, doutora em Geografia e pesquisadora da temática migratória na UECE, foi acionada para desenvolver estratégias de apoio a migrantes residentes em Fortaleza. A iniciativa foi criada a partir de diálogos com diferentes agentes envolvidos com o tema — como órgãos públicos, grupos que prestam assistência e os próprios migrantes — e estruturada em quatro eixos:
- Mercado de trabalho
- Manifestações culturais
- Políticas públicas
- Saúde e educação
Na terceira e última reportagem da série Destino Ceará, o Diário do Nordeste aborda as iniciativas existentes no Estado para atender às pessoas de outros países que adotam o Ceará como moradia.
VIDAS CRUZADAS
Com a criação do programa de extensão, a UECE realiza ações para atender diferentes demandas dos migrantes. Uma delas é vinculada ao curso de Psicologia e atua com as crianças para compreender as dificuldades enfrentadas no contexto migratório. Outro projeto envolve o curso de Letras e promove o português como língua de acolhimento para essas pessoas.
Já na Feira do Migrante, que começou a ser realizada há dois anos, artesãos e artesãs de diferentes nacionalidades expõem suas criações e encontram reconhecimento. “O que tem sido bastante evidenciado é a Festa dos Povos, um momento que os migrantes apresentam suas potencialidades do ponto de vista da cultura e da arte. Tem poetas, músicos e artistas que trazem a cultura do seu país e encontram na universidade uma possibilidade de manifestação”, explica Denise Bomtempo.
Outra dimensão que o programa procura atender é a mobilidade dessas pessoas por Fortaleza. Por meio do projeto Geografias Cruzadas, busca-se traçar uma trajetória delas e contribuir para que o entendimento de questões como o espaço onde vivem, quais meios de transporte elas precisam utilizar e quais equipamentos compõem as redes assistenciais da cidade.
Em Fortaleza, uma cidade turística, não são todos os pontos de acesso público que têm orientações em outras línguas. Grande parte do público que nós recebemos fala espanhol, mas também inglês. (…) Nós não temos (orientações), por exemplo, nos sistemas de transporte coletivo, na rodoviária, nas áreas de visitação, de acesso público ao lazer. As pessoas ficam enclausuradas na cidade.
Uma das principais necessidades apresentadas por migrantes atendidos no programa é o acesso ao mercado de trabalho. “Existe uma demanda muito grande de reconhecimento de título das pessoas que possuem qualificação profissional em outros países”, exemplifica a professora.
A criação de mecanismos para agilizar a revalidação de diplomas e certificados, inclusive, foi contemplada entre as propostas apresentadas por quase todos os estados brasileiros em conferências estaduais realizadas na etapa preparatória para a 2ª edição da Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (Comigrar). O evento ocorre em Brasília de 8 a 10 de novembro, com o tema “Cidadania em Movimento”.
Outras propostas apresentadas pelo Ceará durante essa etapa contemplam o treinamento e a formação intercultural continuada de profissionais que atendem migrantes, refugiados e apátridas. A pesquisadora alerta para a ocorrência de práticas violentas e situações constrangedoras caso a diversidade e as especificidades das culturas não sejam consideradas.
É o caso de pessoas que vivem em abrigos e, por motivos religiosos, não comem determinados alimentos. Ou daquelas que, devido à crença, precisam ser atendidas por profissionais de saúde do mesmo sexo. “Parece um detalhe em meio a questões maiores do ponto de vista da vulnerabilidade econômica, mas ainda assim são questões importantes, se considerarmos toda a diversidade migratória que temos hoje no Brasil e no Ceará. (É necessário ter) práticas mais inclusivas e humanitárias”, afirma.
Ainda na etapa preparatória para a Conferência Nacional, também ocorreram as chamadas conferências livres locais, iniciativas de governos municipais e/ou da sociedade civil. Na Capital, a 1ª Conferência Municipal de Migração, Refúgio e Apatridia foi organizada pela Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) de Fortaleza, no último 27 de fevereiro, com participação de migrantes organizações da sociedade civil e universidades.
VINDA AO CEARÁ
Uma das instituições que compõem a rede de apoio para essas pessoas, no Ceará, é a Pastoral dos Migrantes, da Arquidiocese de Fortaleza. A instituição “faz a ponte” com empresas e escolas para a garantia que eles tenham acesso aos direitos previstos na legislação brasileira — como regulamentação de documentos, trabalho, estudo, saúde e moradia.
“Precisamos cada vez mais trabalhar para a inclusão, para o reconhecimento de que todos somos irmãos e irmãos. As fronteiras são geográficas e ideológicas. Então, nosso trabalho é criar essa aproximação. O papa Francisco diz para sermos pontes e acolhimento na cultura do encontro, e não fronteiras”, explica Idalina Pellegrini, irmã scalabriniana que atua na coordenação da Pastoral dos Migrantes.
Ao chegarem a Fortaleza e serem acolhidos pela Pastoral, muitos migrantes passam a atuar como voluntários, recebendo outras pessoas que chegam e as ajudando a vencer os desafios outrora enfrentados por eles mesmos. É o caso de Eimily Terán Zambrano, venezuelana de 37 anos que vive em Fortaleza há cinco deles.
Eimily conta que ajuda, muitas vezes, com tradução, na atualização de documentos ou buscando vagas de emprego no perfil de quem a procura. “Toco àquelas portas que um dia abriram para mim: ‘Você consegue me ajudar? Tem uma diária para uma mulher, mãe solteira?’. Para homens, como trabalhei na área da construção, conheço alguns engenheiros, então pergunto: ‘Você sabe de alguma vaga?’”, conta.
Quando sabe de alguma oportunidade, ela também recorre à Pastoral para a instituição certificar-se de que todos os benefícios serão garantidos ao migrante que for contratado. “Não é porque somos migrantes, estamos precisando, que vão abusar do nosso trabalho. Também passei por isso”, conta. Além disso, ela também participa de audiências públicas para falar sobre migração.
Eu já passei por tanto. Sempre vou tentar melhorar para que outras pessoas que estão chegando não passem por um momento tão ruim quanto eu passei. Deixar o caminho o mais leve possível.
Conseguir um emprego é a maior dificuldade apontada por Eimily. Foi um longo caminho até ela conseguir o atual cargo como em uma rede de saúde. “Foi porque outra pessoa ajudou com ponte. (…) O que vejo em outras empresas é que, para entrar, precisa ter uma pessoa dentro para indicar. Temos muitos migrantes bem capacitados em qualquer área, mas validar o diploma é muito burocrático, lento e caro”, diz.
Formada em Administração, Eimily tinha um bom emprego, bom salário e casa própria, então não queria sair da Venezuela. Mas a situação econômica do país agravou-se e o poder de compra reduziu drasticamente. Em um fim de semana de reunião familiar, ela foi ao mercado para comprar duas garrafas de refrigerante e pagou o equivalente ao valor recebeu para as férias inteiras.
Passei o mês sem dinheiro, em casa, e comecei a repensar as coisas. Quando voltei a trabalhar e peguei minha primeira quinzena, só consegui pagar quatro dias de passagem de casa para o trabalho.
O Brasil não era a primeira opção, mas o dinheiro que havia guardado para emergências só era o suficiente para vir até Fortaleza, onde já tinha familiares. Então, ela enfrentou uma travessia de 15 dias com o filho e outra familiar, para chegar em Fortaleza. Eles saíram do estado de Táchira, na Venezuela, entraram no Brasil por Roraima e passaram por Boa Vista (RR), Manaus (AM) e Belém (PA), entre viagens de ônibus e barco.
Cinco anos após chegar à capital cearense, ela sente que os migrantes são mais percebidos pela população e pelo poder público e vê mais ações inclusivas sendo realizadas. “Em escolas, estão dando depoimentos sobre bullying, falando sobre a migração, os processos que levam a migrar — seja guerra, seja a situação do país ou simplesmente porque a família quer melhorar. Há três anos, eu não sentia nada disso. E mais organizações públicas estão se somando e tentando ajudar”, exemplifica.
INICIATIVAS NO CEARÁ
No Ceará, a Secretaria dos Direitos Humanos (Sedih) atua para garantir dignidade e direitos a quem chega ao estado em situação de vulnerabilidade e hipossuficiência, por meio do Programa Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Neste mês de outubro, a Pasta inaugurou o Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM) instalado no Aeroporto de Fortaleza. A rodoviária da Capital também conta com um equipamento desse tipo.
Localizado em espaçosde grande fluxo, os postos atendem os migrantes que chegam de outros países ou de outros estados. Eles também estão voltados para possíveis vítimas de tráfico de pessoas ou até para orientar brasileiros que queiram ir para outros países. “Já teve esse posto em um momento anterior, hoje (está) sendo reestruturado. Na rodoviária, é o primeiro posto avançado do Brasil e o do aeroporto é o quinto. Então, é um momento de comemorar”, destaca Jamina Teles, supervisora do Programa.
A gestora aponta que é realizada uma formação contínua com os profissionais da ponta dos serviços sobre temas como o que é o tráfico de pessoas e como prevenir, identificar e denunciar esse problema. Além disso, explica que o Programa é acionado por diferentes órgãos, como hospitais e consulados, para prestar apoio.
“É quando chega até nós o apoio para fazer repatriação, translado para Fortaleza, documentação e garantia de abrigo. Em toda essa articulação em rede, procuramos ter esse fluxo fluido para que o trabalho voltado à garantia de direitos seja preservado”, diz.
Solicitar um CPF é simples para nós (brasileiros), vai ao Vapt Vupt, vai à Receita. Porém, para o migrante, ele fica totalmente desnorteado, quando chega aqui. Tem que ter uma referência. E a referência é a política pública.
Apesar dos avanços na temática migratória, Silvana Nunes de Queiroz, professora da Universidade Regional do Cariri (URCA) e coordenadora do Observatório das Migrações no Estado do Ceará (OMEC), aponta a necessidade de capacitação de uma rede de apoio e acolhimento não somente em Fortaleza, mas no Interior, como no chamado Crajubar — Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha —, onde também existe o Comitê de Migração e Refúgio do Cariri, ligado à Diocese do Crato.
Movimentos sociais e instituições que trabalham com essa causa na região apontam a demanda por: acompanhamento e orientações a migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados; acesso às informações referentes a documentação e serviços públicos; equipamentos como a Casa do Migrante, para atendimento, acolhimento e realização de ações sociais, e uma representação da secretaria em Direitos Humanos no Cariri para acolher as demandas da causa migratória. “Assim, teríamos políticas públicas importantes para acolhida, proteção e integração dos migrantes internacionais em todo o Ceará”, afirma a professora.
Uma das entidades que atua em parceria com a Desih é a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE). Esse trabalho abrange desde a regularização do protocolo de refúgio e a garantia de acesso a educação e saúde, explica a defensora pública Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas.
Ela também destaca que o Brasil é reconhecido como um país que acolhe as pessoas em processo migratório. “A Constituição brasileira garante esses direitos (de acesso ao SUS, à educação e a toda a rede assistencial), o que é um diferencial (em relação a outros países)”, afirma.
A defensora pública relata, porém, uma experiência diferente com a Prefeitura de Fortaleza. “Ainda existe uma dificuldade muito grande de acolhimento e garantia de direitos desses migrantes, de maneira geral”, afirma. Ela aponta que as principais dificuldades estão relacionadas à moradia, educação e saúde. “Os migrantes da etnia Warao vivem em situação de mendicância, em condições insalubres, sem condições sequer de moradia básica”, exemplifica.
Em nota, a Prefeitura de Fortaleza informou que desde 2021 desenvolve uma série de ações intersetoriais voltadas à inclusão social dos migrantes residentes na cidade. Atualmente, a Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social atende 84 migrantes venezuelanos pertencentes à etnia indígena Warao, por meio do Centro de Referência da Assistência Social.
“As famílias migrantes foram inseridas no programa Bolsa Família e no Benefício de Prestação Continuada. Foram concedidas, ainda, passagens aéreas solicitadas por dez migrantes para deslocamento a outras cidades”, diz o comunicado.
A Prefeitura também destaca que no último mês de agosto passou a fornecer alimentação a venezuelanos residentes no Centro da Capital em situação de insegurança alimentar grave. “O combate à fome e à insegurança alimentar é feito com a distribuição diária de 120 refeições, entre 70 almoços e 50 porções de sopa no período da tarde. A Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor) também atende 11 famílias no Programa Locação Social do Município de Fortaleza”, diz a nota.
Além disso, o Executivo municipal aponta o atendimento de saúde a migrantes venezuelanos no posto de saúde Paulo Marcelo, no Centro, com acompanhamento por equipe de saúde básica. Na Educação, 177 estudantes venezuelanos, entre crianças, adolescentes e adultos, estão regularmente matriculados na rede municipal de ensino.
A CRIAÇÃO DE UMA POLÍTICA NACIONAL
A 1ª edição da Comigrar ocorreu em 2014 e contribuiu para o processo que levou à criação da atual Lei de Migração, instituída três anos após o evento. Denise Bomtempo aponta que a primeira conferência nacional também marcou o debate sobre a elaboração de uma política nacional sobre o tema. Porém, desde então, houve “um hiato” na discussão.
Em janeiro de 2023, por meio da Portaria MJSP nº 290/2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública instituiu um Grupo de Trabalho voltado para o estabelecimento da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia. Ao término dos trabalhos, foram compiladas mais de 1,4 mil proposições coletadas durante as reuniões, 300 respostas a um formulário online e 33 documentos institucionais.
“Uma política nacional nos potencializa enquanto Estado e potencializa a garantia de direitos que está registrada na Lei 13.445. É um momento de grande expectativa. A ideia é que agora a gente dê um grande salto”, afirma Jamina Teles.
Segundo informações do Governo Federal, a normativa promoverá a criação e organização de um rol de iniciativas que instrumentalizam a gestão da Política de forma descentralizada, intersetorial e participativa, como:
- O Plano Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia
- As Conferências Nacionais de Migrações, Refúgio e Apatridia (Comigrar)
- O Conselho Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (Conamigra)
- O Comitê Interministerial de Migrações, Refúgio e Apatridia
- O Fórum de Articulação com os Estados e Distrito Federal
- A Rede Nacional de Cidades Acolhedoras (RNCA)
- O Portal de Dados sobre Migrações, Refúgio e Apatridia
- Os Centros de Atendimento e Integração de Migrantes, Refugiados e Apátridas (CEAIM)
- O Programa de Qualificação em Migrações, Refúgio e Apatridia no âmbito da PNMRA
SERVIÇO
Pastoral dos Migrantes de Fortaleza
Telefone: (85) 3388-8701
E-mail: pastoraldosmigrantes.ce@gmail.com
Instagram: @pastoralmigrantesceara
Programa de extensão “Vidas Cruzadas: migração, saberes e práticas”
E-mail: denise.bomtempo@uece.br
Instagram: @leaup_
Programa Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
Telefones: (85) 98644-9482 / 98439-3462
E-mail: programamigrante@direitoshumanos.ce.gov.br
Diocese do Crato
Telefone: (88) 3521-1110
E-mail: curia@diocesedecrato.org
Observatório das Migrações no Estado do Ceará
Instagram: @observatoriodasmigracoesce