Lançada oficialmente na Quarta-Feira de Cinzas, a Campanha da Fraternidade 2023 se propõe a discutir e dar propostas para resolver o problema da fome. Só no Ceará, 2,4 milhões de pessoas - quase a população inteira da capital Fortaleza - acordam diariamente sem saber o que vai comer.
No Ceará, a campanha foi lançada na manhã desta quinta-feira (23), com a presença de membros da igreja, da socieidade e também a do Arcebispo de Fortaleza, Dom José Antonio Aparecido Tosi Marques. Na ocasião, ele definiu a fome como um "escândalo" humanitário.
Da parte do Criador, na Sua criação não falta recursos. Os homens é que não aproveitam, não respeitam, não levam a todos aquilo que Deus criou para todos. Existe não só o drama, mas o escândalo da fome na humanidade. Ela rompe e fere a dignidade humana.
A população afetada pela insegurança alimentar grave foi diagnosticada ainda em 2022, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Brasil (Vigisan), elaborado pela Rede Penssan. Outros 2,4 milhões de cearenses convivem com a insegurança moderada, quando há uma redução concreta no acesso diário aos alimentos.
O estudo avaliou que a pandemia da Covid-19 agravou as condições de subsistência da população brasileira, incluindo a capacidade de conseguir comida. Esse cenário de emergência social provocou a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) a discutir o tema pela 3ª vez: a primeira foi em 1975, seguida por 1985.
“A Campanha vai completar 60 anos no Brasil e sempre traz um tema específico que envolve as questões sociais do povo. A Igreja, interpelada pelo evangelho de Jesus Cristo, tem que dar resposta a essas questões”, ressalta Dom Geraldo Freire, bispo da Diocese de Iguatu, que envolve 19 municípios do Ceará.
O religioso compartilha que, nesse tempo, foram criados diversos organismos atuantes na caridade, como as Cáritas, as Pastorais da Criança e do Povo da Rua, e grupos que distribuem refeições de forma ordenada e rotineira.
A Cáritas Diocesana de Sobral, por exemplo, atua em 11 paróquias, conforme explica José Maria Gomes Vasconcelos, assessor da entidade e coordenador diocesano da Campanha da Fraternidade da Diocese de Sobral (que abrange 29 municípios da Região Norte do Ceará).
“Como cristão, pra mim, é muito doloroso. Essa situação de fome na nossa região é muito preocupante. Hoje, temos quase 20 mil famílias em extrema pobreza, dados do Cadastro Único do município de Sobral. Essas pessoas estão sofrendo na pele e na barriga”, lamenta.
Segundo José, o problema atinge tanto a zona urbana, onde há pessoas em situação de rua e catadores em vulnerabilidade social, quanto a zona rural, onde a maioria dos afetados tira sustento da agricultura familiar. A assistência oscila de 100 a 500 famílias, dependendo do período.
Dom Geraldo Freire, de Iguatu, reforça que a fome é um “drama muito forte”, enquanto o acesso à alimentação “é um direito básico”. “Muitas paróquias têm trabalhos sociais concretos que atendem a muitas pessoas. Pretendemos, com a Campanha, expandir esse trabalho de assistência aos mais sofridos”, projeta.
Entre as propostas pensadas pelos representantes para a minimização do problema, com o apoio do poder público, estão:
- instalação de cozinhas comunitárias em todo o Estado
- reabertura ou requalificação de restaurantes populares
- apoio e fortalecimento de feiras de agricultura familiar
- incentivo a políticas de emprego e renda, para diminuir a dependência assistencial
Parte dessas demandas já está descrita no Programa Ceará Sem Fome, recém-aprovado pela Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). A proposta do Governo do Ceará deve criar, por exemplo, uma rede de Unidades Sociais Produtoras de Refeição (USPR) com meta de atender até 100 mil pessoas por dia.
Outro ponto previsto é a distribuição de um cartão alimentação para 86 mil famílias, sobretudo para aquelas com renda insuficiente para alimentação. A terceira frente aborda a distribuição de itens de gênero alimentício, de higiene e de limpeza.
Doação e partilha
“Somos um país riquíssimo, exportador de alimentos, mas temos uma população enorme passando por privação de comida. Precisamos entender que não há desenvolvimento com pobreza”, aponta José Maria Gomes, de Sobral.
Essa também é a leitura de Dom José Antonio Aparecido Tosi Marques, arcebispo metropolitano de Fortaleza, em mensagem destinada às comunidades da Arquidiocese. A fome, para ele, é “a ferida da humanidade”.
São milhões de seres humanos que vivem nesta carência fundamental em suas vidas. É responsabilidade de toda a humanidade, pois os recursos na natureza não faltam, o que falta é a comunhão e solidariedade para resolver os desafios da vida digna igualmente para todos.
O arcebispo propõe a partilha e a solidariedade a partir de gestos ensinados pela Bíblia, como a multiplicação de pães e peixes, um dos milagres mais conhecidos de Jesus Cristo.
“Os recursos que temos na Terra são suficientes para todos, se não fosse o desperdício e o estrago egoísta da natureza para acúmulo de riquezas infrutíferas, e descuido irresponsável com os recursos naturais”, alerta.
No dia 2 de abril, Domingo de Ramos, será realizada a Coleta Nacional da Solidariedade. Ao longo da Quaresma, as paróquias arrecadam recursos e enviam 40% do total ao Fundo Nacional de Solidariedade (FNS), que atende a projetos sociais em todo o Brasil. Os outros 60% são aplicados em ações das dioceses locais.
Diálogo inter-religioso
Os mobilizadores ouvidos pela reportagem reforçam que a Campanha não é exclusiva para membros da Igreja Católica, mas recebe de bom grado apoio de qualquer pessoa que se sinta tocada e indignada com o cenário brasileiro.
“Se você não se sente inquieto com a situação de fome e miséria do seu irmão, você pode ser tudo, menos cristão”, reflete José Maria Gomes. “O verdadeiro cristão tem essa marca da solidariedade e do cuidado com a vida, não só das pessoas, mas também do planeta”.
O coordenador de Sobral percebe a oportunidade de “contagiar a população para um novo jeito de ser Igreja”, incentivando a partilha, a solidariedade e a caridade.
Além de buscar a mudança social, Dom Geraldo Freire também ressalta ser um momento de mudança interior a partir do exemplo de Jesus Cristo.
“Quando via alguém sofrendo, doente ou com fome, ele tinha compaixão, que significa ‘sentir com o coração’. Muita gente tem só pena, mas pena não resolve nada. Quando você se coloca no lugar do outro como Jesus fazia, a gente aborda o tema e propõe ações concretas para socorrer essas pessoas”, ensina.
Campanha há 38 anos
A última Campanha da Fraternidade a abordar a fome como tema foi em 1985, há 38 anos. À época, o tema proposto foi “Pão para quem tem fome”, analisando um cenário em que a alta inflação impedia o acesso aos alimentos a grande parte da população.
Em mensagem enviada aos brasileiros, o então Papa João Paulo II apontou que a solução para a miséria e a fome exige "novos caminhos que levem à participação de todos na reconciliação das classes sociais".
"Dai pão para quem tem fome, toda espécie de fome. Queridos brasileiros, colaborai na Campanha da Fraternidade. Ouvi o apelo da Quaresma: jejuar para dar", disse o Santo Padre.
O arcebispo de Fortaleza, Dom Aloísio Lorscheider, considerou que a fome não deixa de ser política, uma vez que "a falta de pão não ocorre por falhas da natureza, mas resulta dos mecanismos adotados por um sistema econômico e político no qual o mundo está envolvido".