Nas matas, rios e no sertão cearense há uma ampla diversidade de serpentes - na mesma medida em que mitos sobre o potencial perigo desses animais se espalham do interior à Capital. Por isso tem quem sinta aflição só de ver imagens de cobras, mas vale a coragem para conhecer as características dos bichos de relevância ambiental.
Isso porque repercutem histórias como da cobra-preta que bebe leite, da anaconda que ameaça outros bichos e humanos, da salamanta com formato de “8” no corpo com veneno mortal e a picada da cobra-cipó que secaria a vítima até morrer magra como a serpente.
Já ouviu algo parecido? No Ceará existem 71 tipos de serpentes catalogadas pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado (Sema), mas apenas um grupo de cerca de 10 delas representa perigo à saúde.
Ainda assim, os bichos geram receio na população ao aparecer nas casas, ruas ou trilhas. Para ter uma noção, só na quadra chuvosa deste ano, entre fevereiro e maio, foram 2.244 serpentes resgatadas pelo Corpo de Bombeiros do Ceará.
As cobras exercem função importante de controle de pragas - elas se alimentam de ratos, por exemplo - e algumas espécies têm o veneno como base para a fabricação de remédios. Pesquisas científicas, inclusive, analisam a criação de um medicamento contra câncer.
Mas, no imaginário, os mitos sobre o perigo das cobras ganham repercussão em todo o Estado e fazem parte da cultura popular local. Algumas dessas histórias você pode conferir aqui:
Cobra-preta mama em gente?
Talvez você já tenha ouvido essa história: uma mãe dorme enquanto dá de mamar ao bebê, quando uma cobra retira o pequeno do peito para se alimentar e coloca a cauda na boca do pequeno para que não chore.
No Ceará, o animal associado a essa lenda é a cobra-preta (Pseudoboa nigra), mas que devido às histórias também é conhecida como cobra-de-leite.
“Tem várias espécies de cobras-pretas, mas a do mito aparece com algumas manchas bem brancas no corpo e dizem que, quanto mais a cobra bebe leite, mais vai ficando branca ao longo da vida”, conta a bióloga Castiele Holanda Bezerra.
A especialista faz parte Núcleo Regional de Ofiologia (Nurof) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e durante as palestras realizadas a questão sempre aparece.
A explicação repassada se baseia em dois motivos: as cobras não possuem estrutura para a sucção do leite e, mesmo se houvesse a possibilidade, os animais são intolerantes à lactose.
“Se caso elas conseguissem, de alguma forma, não teria a lactase, que é a enzima que digere o leite. Teria uma diarreia como uma pessoa intolerante e não seria interessante buscar esse alimento”, reforça.
A gente acha, que como existe o mito, se aparecer uma cobra-preta no cômodo de uma mãe com filho, as pessoas já pensam que ela está alí para isso. Também não é uma cobra rara, então vez ou outra aparece
A história é tão antiga que foi registrada no livro O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, com uma carta por volta do século XVII, como conta.
“Os índios falavam de uma cobra que bebia leite das mães com recém nascidos, mito praticamente igual como a gente conhece hoje. É algo muito difundido, mas sem nenhum fundamento”, contextualiza.
Anaconda no Ceará
Com potencial de alcançar mais de 9 metros de comprimento, a sucuri (Eunectes murinus) sempre que aparece no Estado desperta atenção. O primeiro relato científico foi reportado em 2008, mas a presença do animal era comentada antes disso.
No entanto, como lembra Castiele, o Corpo de Bombeiros realizou nos últimos anos. “A gente tem a presença de sucuris aqui na nossa Região Metropolitana, que é a famosa Anaconda. Foi encontrada tanto no litoral oeste como no litoral leste, em Aquiraz, próximo de Fortaleza”, completa.
A cobra não oferece risco à saúde humana devido à ausência de veneno, mas mitos surgem sobre o sumiço de animais e de seres humanos que seriam comidos pela sucuri. Um deles acontece em volta da Lagoa do Urubu, em Fortaleza.
O suposto animal existente no local ganhou até nome: Isaura. “Existem esses bichos na nossa região, então a história da Isaura não sei se realmente existiu em algum momento uma sucuri ou é só um mito”, destaca.
Não há uma definição sobre a origem das sucuris no Ceará, porque o animal costuma ser nativo da região amazônica. Uma das possibilidades é da soltura irregular e migração da sucuri por corpos d’água.
Cobras de ‘venenos mortais’
Mesmo sem nenhum tipo de substância tóxica ao ser humano, algumas espécies de cobras são tidas como venenosas e parte das características associadas a isso não tem embasamento científico.
Um desses casos é a salamanta (Epicrates assisi). Dizem que se o animal desenvolver um formato do número “8” entre as manchas, teria um veneno capaz de matar rapidamente um ser humano.
“A salamanta é um animal parente da jiboia, não tem veneno nenhum, mas no Interior o pessoal associa a um animal muito peçonhento. Dizem que se ela fechar o “8”, entre as manchas que ela tem no corpo, ficaria super mortal”, contextualiza a bióloga.
O animal, na verdade, se criado desde filhote, se torna dócil, como acrescenta Castiele. “A salamanta não oferece perigo nenhum, inclusive, é um dos animais criados como um pet. É comercializada nos criadouros”, completa.
Outro falsa associação acontece com a cobra-cipó (Oxybelis aeneus), que causa medo na população. O mito diz que a picada faz a “vítima” secar até morrer.
"A região interna da boca nessa espécie é bem preta, o que serve para assustar aqueles que ameaçam ela, e ainda dizem que se ela morder a pessoa morre 'seca' igual a ela", conta a especialista.
Isso causa receio sobre o perigo da espécie, contudo, o bicho não é nem mesmo venenoso. “Ela é bem fininha e dizem ‘olha, se a cobra-cipó morder vai morrer seco’, mas não é um animal peçonhento”, reforça.