Cânions urbanos: corredores cercados de prédios contribuem para sensação de calor em Fortaleza

As mudanças climáticas estão impactando diretamente as grandes cidades, onde construções mais altas criam espaços densos que podem influenciar na direção dos ventos, tornar a temperatura do ar mais alta e gerar impacto no conforto térmico de quem utiliza as ruas. Essas são características de “cânions urbanos”, corredores de grandes prédios capazes de modificar as trocas de calor numa determinada região.

Essa é a segunda reportagem da série “O Futuro é Verde”, especial do Diário do Nordeste que debate como as cidades precisam se adaptar às mudanças aceleradas do clima e como as respostas estão, em sua maioria, na valorização do ambiente natural. 

Os cânions lembram desfiladeiros naturais, mas nos centros urbanos provocam uma sensação de “fechamento e enclausuramento”, segundo a arquiteta e urbanista Lara Furtado, doutora em Planejamento Regional e professora visitante na Pós-Graduação em Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC).

“Essas formações podem influenciar o clima local justamente porque restringem a circulação de ar e aumentam a absorção de calor pelas superfícies, como o concreto e o asfalto. Também podem afetar a qualidade do ar e limitar a penetração da luz solar nas ruas”, explica ela.

Em Fortaleza, a presença de unidades verticais tem crescido seguindo um fenômeno nacional. Dados do Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 22 anos, o percentual de pessoas que passaram a morar em apartamentos aumentou quase 10 pontos percentuais na capital:

Porém, ressalta Furtado, a verticalização não é um fenômeno negativo, mas precisa ser promovida de forma inteligente para otimizar os serviços públicos urbanos. 

“É muito melhor você ter uma via servindo 300 pessoas do que uma servindo 10, porque o custo de se fazer essa via é o mesmo. A lógica da verticalização é boa, mas para ser bem sucedida ela precisa de um planejamento urbano integrado, com a inclusão de áreas verdes, espaços públicos acessíveis e principalmente infraestrutura de mobilidade adequada”, aponta a pesquisadora.

Outro ponto a se pensar, sugere ela, é que os grandes edifícios consomem muita energia. Sempre ligados ao ar-condicionado e à iluminação artificial, eles geram um calor adicional que pode contribuir para o aquecimento local.

Brenda Rolim, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-CE), entende que a flexibilização de permissões municipais para construir prédios acima do permitido em troca de contrapartidas de construtoras tem levado à criação de “superprédios” em Fortaleza, especialmente na orla - muitas delas, com vários andares para estacionamento.

“Esses paredões que estão à nossa volta tornam a cidade menos permeável para o vento. Eles ainda são pontuais, mas a tendência de futuro é que haja muitos. Imagina você na rua cercado nas quatro esquinas por paredões de 6 a 8 metros… Além de prejudicar visualmente quem usa a rua, que não vai ter uma vista plana, elas vão ficar mais quentes e caminhar pelos passeios vai ficar mais desconfortável”, critica.

Para a arquiteta, se não houver uma discussão qualificada sobre esse processo e os prédios continuarem sem jardins ou áreas térreas, pior fica a vida de quem precisa usufruir do espaço público.

Não vai adiantar eu projetar uma casa que tem uma boa condição de entrada de vento e de iluminação, um projeto saudável, se o ambiente em volta de mim não proporcionar que esse vento chegue até a minha edificação. 
Brenda Rolim
Presidente do CAU-CE

A professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), Márcia Cavalcante, concorda em parte. Para ela, o aumento do calor não se deve aos 'superprédios', mas ao crescimento da massa edificada, à falta de arborização nas ruas e à despreocupação dos próprios projetos. 

“Vários edifícios juntos criam a tendência de ilhas de calor porque eles não têm mais pilotis vazados. Um paredão desses vai fazer com que o vento suba ou desvie daquele obstáculo, e essa arquitetura impede a ventilação ao nível do pedestre”, percebe. “Hoje, em Fortaleza, vejo uma arquitetura que ainda não tem nenhuma preocupação com essas questões, infelizmente”. 

Caminhos do vento

Nos últimos anos, urbanistas e ambientalistas têm levantado discussões sobre a concessão de permissões para a construção de "superprédios" na Praia de Iracema. Em resposta, Luciana Lobo, titular da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), é enfática: prédios “barradores de vento” são “um mito”. 

Ela afirma não ter recebido nenhuma comprovação científica do fenômeno e que são “pouquíssimos os prédios da cidade que estão construídos com altura maior que 22 andares”.

Em 2016, um estudo do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil: Estruturas e Construção Civil (PEC), da UFC, confirmou que a direção dos ventos na cidade se dá predominantemente entre as direções leste e sudeste, e verificou “que estes adentram pela região onde se situa a Praia do Futuro, posteriormente seguindo para a Praia de Iracema e saindo no sentido da cidade de Caucaia”.

Baseada nesses critérios, Lobo indica que “não tem vento na nossa cidade que sofra interferência por conta desses prédios”. Sobre o calor e o desconforto térmico, a gestora reconhece que estuda mapas onde há maior adensamento, mas ressalta que o planejamento urbanístico é “muito mais macro, para a cidade inteira”.

Entre as principais iniciativas para mitigação do calor, ela cita:

  • a criação de um gabinete de governança climática para acompanhar as políticas ambientais praticadas por cada secretaria;
  • aumento do plantio de árvores em obras públicas, “a maior quantidade possível onde for possível”;
  • a instalação de árvores frutíferas em todas as escolas de Fortaleza por meio do projeto Sementinha;
  • o projeto de construção de 30 novos microparques;
  • a revitalização e urbanização do entornos de lagoas.

Asfalto é um vilão?

Outra ação em curso para amenizar o calor é a substituição, em diversas obras públicas, do asfalto por blocos de piso intertravado. Segundo a Prefeitura, além de melhorar o aspecto urbanístico, a nova pavimentação tem o potencial de reduzir a sensação térmica em até 10°C no ambiente onde é instalada, “resultando em uma temperatura ambiente mais agradável, especialmente durante os meses mais quentes do ano”.

Eu como cidadão percebo o calor, mas acho pouco provável que a temperatura do asfalto tenha mudado. O que talvez impacte na sensação da população são os cânions urbanos. Hoje, na Região Metropolitana de Fortaleza, temos mais de 100 mil edificações acima de dois andares. Isso pode trazer mais explicações do que propriamente a cor do pavimento.
Jorge Soares
Professor da UFC

Jorge Soares, coordenador do Laboratório de Mecânica de Pavimentos da UFC, reconhece as qualidades, mas desconhece medições da eficácia na redução da temperatura. Ele afirma que já conduziu pesquisas há cerca de 20 anos que aferiram acima de 60 ºC no asfalto, em algumas rodovias, mas tem cautela em bater o martelo sobre o tema.

Segundo o especialista, o ideal é fazer um monitoramento técnico para se tomar decisões sobre evidências e a partir de medições precisas.   

Alternativas e retrofit são soluções

Mas, afinal, se não é possível “desconstruir” os edifícios, que soluções podem ser apontadas para reduzir a sensação de calor nas áreas mais densas? Além da expansão de soluções baseadas na natureza, como os telhados verdes para os edifícios absorverem menos calor, a arquiteta Lara Furtado pondera o retrofit, processo de reabilitação de construções mais antigas.

“A revitalização de espaços públicos, praças, parques e áreas de lazer é uma coisa primordial, e o retrofit de edifícios para deixá-los mais resilientes e com materiais mais sustentáveis. Alguns são recicláveis, com baixa emissão de carbono. Também podem usar placas solares para produzirem a própria energia e sistemas de captação da água da chuva. Tem várias estratégias tecnológicas”, destaca.

Em nível avançado, ainda é possível incluir novas ferramentas de monitoramento em tempo real e sensoriamento smart (como acender luzes por detectores de movimento), para que as próprias construções possam administrar melhor os recursos energéticos disponíveis. Amarrando tudo, a urbanista finaliza: é preciso incentivar a participação comunitária no processo de planejamento.