“Aqui vai ser o meu, se Deus quiser”, aponta um dos ocupantes de um terreno no Carlito Pamplona, em Fortaleza, onde cerca de 500 famílias demarcam espaços, constroem barracos e criam ruas no que poderia ser um “mini-bairro” dentro da comunidade. O local possui 33,5 mil m² e estava desocupado, de acordo com moradores do entorno, há cerca de 30 anos.
Por lá, o Diário do Nordeste presenciou o retorno dos ocupantes após uma desocupação violenta para retirada do grupo, que aconteceu na terça-feira (11). No lugar, onde há piso cimentado, são pintadas faixas e nomes dos chefes de família. Também são colocadas placas com o nº do “lote”.
Já no trecho de terra batida, as estacas de madeira e as lonas servem não só para abrigar os ocupantes como também para indicar o local onde se pretende construir moradia. Ao circular pelo local, a reportagem também identificou trechos com a inscrição “aqui tem dono”.
Entre os barracos improvisados, circulam de crianças a idosos, e muitas mães solo relatam o motivo que as levaram para a ocupação: desemprego. Sem condições de pagar aluguel, a alternativa encontrada foi procurar um pedaço de terra no local.
Rafael Pequiar, líder comunitário e membro do grupo da ocupação, contextualizou que a situação é compartilhada pela maioria dos ocupantes. "O povo tem direito à moradia própria, assistência familiar, ao saneamento básico, à educação, e a gente vai lutar por justiça", frisa.
A gente tava organizando o terreno para, de uma forma justa, dar um pedaço pra cada pessoa
Uma pessoa que preferiu não se identificar levantava de novo o barraco onde estava com o sobrinho, mesmo sob o sol forte do meio-dia.
"Desde ontem (terça-feira) que nós estamos tentando levantar de novo, porque um trator derrubou. Há mais de 20 anos esse terreno tá abandonado, o dono não se importava, mas depois que os moradores precisaram de uma casa…”, reflete.
A ocupação surgiu como uma esperança. "A gente não tem onde morar e não vamos desistir. Eu morava na rua e agora estou aqui”, completa.
Sobre a situação, a empresa proprietária do terreno, Fiotex, informou, por meio de nota, nesta quinta-feira (12) que “a ação realizada para pôr fim à demarcação em seu terreno foi conduzida de forma legal, em conformidade com o Capítulo III, Artigo 1.210, do Código Civil Brasileiro”.
Já o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) respondeu à reportagem que “o referido caso não se encontra dentre as demandas pertencentes ao acervo da Comissão Regional de Soluções Fundiárias do TJCE, tampouco foi localizado processo judicial com os parâmetros disponibilizados”. Dessa forma, a Comissão não foi instada a atuar na questão.
A Secretaria dos Direitos Humanos do Ceará (Sedih) informou que faz o levantamento socioeconômico das famílias, identificando as demandas sociais, psicológicas e jurídicas pra encaminhamento dessas pessoas.
Já a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) de Fortaleza informou que as famílias afetadas pela desocupação “receberão, de forma prioritária, atendimento socioassistencial na sede do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) Jacarecanga, equipamento que atende o território.
Organização popular
A ocupação 'Deus é Amor' é semelhante a outros cenários em Fortaleza e evidenciam as demandas por moradia na capital cearense e acontecem em regiões diferentes da cidade – seja na periferia, como no caso do Carlito Pamplona, mas também no Centro da Cidade, a exemplo das 24 famílias que viviam na Escola Jesus, Maria e José, em 2019.
Outro exemplo é a ocupação “Vítimas da Covid”, com cerca de 200 famílias que entraram num terreno particular na Avenida do Aeroporto, em 2022. Em cada um desses espaços, surge uma organização interna para moradia.
O geógrafo e professor da Universidade Federal do Ceará, Alexandre Queiroz Pereira, que também é membro do Observatório das Metrópoles e colunista do Diário do Nordeste, explica que esses movimentos sociais podem ser assessorados em relação à legislação e regras urbanísticas por iniciativas como Ceará Periferia, Coletivo Quintal e Fórum Popular de Acompanhamento do Plano Diretor.
“Quando vão estabelecer esses mecanismos de ocupação de áreas que são vazios urbanos, lamentavelmente, as gestões municipais não aplicam o dispositivo para estabelecimento da função social da propriedade urbana”, completa.
O pesquisador observa empresários argumentando que não se pode “invadir” propriedade privada e também o descumprimento do direito à moradia, ao lazer e à saúde, como exemplifica.
Entre os instrumentos legais, Alexandre lembra das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), que é uma política de ocupação de espaços vazios na cidade “em terrenos que geralmente estão esperando um processo de incorporação imobiliária, mas que têm um custo social muito elevado e poderiam ser utilizados para a produção de moradias.”
O que o bom urbanismo social prega é a construção de pequenos condomínios em áreas bem localizadas, produzindo melhorias em outras zonas de habitação social com regularização fundiárias, infraestrutura e melhoria do padrão viária e construção de calçadas
O especialista desaprova a lógica de construir moradias afastadas da infraestrutura básica, como saneamento, escolas, unidades de saúde e meios de transporte.
"Não basta só dar o papel da casa, é importante, mas tem que ir além com a localização adequada de políticas habitacionais, impedimento dos vazios urbanos e mecanismos de socialização”, completa.
Por que existem terrenos vazios?
Nas capitais brasileiras, as terras estão concentradas nas mãos de famílias ricas que deixam espaços vazios na busca por valorização com a especulação imobiliária, como analisa Bruna Santiago, arquiteta e urbanista e pesquisadora do Observatório das Metrópoles.
"Só que, a partir da Constituição de 1988, a gente tem uma política de função social da propriedade. O que isso significa? A propriedade não pode ficar vazia ou abandonada, quando tem pessoas precisando de terra para construir suas casas", completa.
A política constitucional serviu de base para as legislações municipais em todo o País, inclusive, o Plano Diretor de Fortaleza. A especialista cita o instrumento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) Progressivo, caso proprietários de terrenos ociosos não queiram ceder o espaço.
“A prefeitura pode adquirir esse terreno para construir habitação de interesse social para a população de baixa renda. Na prática, esses instrumentos não funcionam muito bem porque existe um conflito de interesses", avalia.