Os leitos Covid são equipados para monitorar os impactos físicos da doença, mas dimensionar os efeitos psicológicos exige esforço maior. No Ceará, quem passa por internamento devido ao coronavírus relata ansiedade, insônia e angústia como as principais complicações psicológicas.
Este cenário está representado nos dados parciais do relatório “Follow-UP” produzido pela Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE), vinculada à Secretaria da Saúde do Estado (Sesa).
Foram ouvidas 470 pessoas de vários municípios cearenses atendidas no Hospital Leonardo da Vinci na 1ª e 2ª onda da doença. Do total, 33,8% de quem foi atendido no período mais recente apresentou ansiedade.
Insônia foi relatada por 31,8% dos entrevistados na pesquisa, enquanto angústia foi comum para 20%. Alteração cognitivo-comportamental, como lapsos de memória, atingiu 11,3% e o medo de morrer foi a resposta de 9,2% daqueles infectados na 2ª onda da Covid.
“No cenário da pandemia como um todo é comum o medo de se infectar, da internação e do óbito, tanto de si próprio como de outras pessoas. Além de repercussões no emprego, na rotina e tudo isso costuma evoluir para um quadro de agravamento dos sintomas ansiosos”, descreve o psiquiatra Matias Carvalho Aguiar Melo.
O médico, preceptor da Residência Médica de Psiquiatria do Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), ressalta a possibilidade de evolução dos sintomas de ansiedade. “Quando a gente fala de um paciente internado, que vivenciou uma situação mais grave da Covid, esse medo se torna potencializado”.
A própria Covid, por cursar com uma reação inflamatória, também pode culminar nos sintomas de humor. Já é comprovado em algumas pesquisas que doenças inflamatórias interferem no humor. Então, tem essa dupla via para explicar as queixas de angústia
O especialista contextualiza a ansiedade como um termo amplo para diversos sintomas psíquicos em relação à preocupação, catastrofização sobre o futuro, inquietação psicomotora e incapacidade de relaxar.
“Quanto a sintomas físicos, podem culminar com tremores, falta de ar, sudorese, até dores. Então, pode se apresentar de diversas formas”, ressalta Matias.
Mariana Kolb, psicóloga hospitalar, observa o empenho dos profissionais de saúde para gerenciar os prejuízos mentais. “O grande gatilho de sofrimento foi o distanciamento da família do paciente, a comunicação das notícias difíceis - de conseguir articular a distância e o cuidado dos pacientes”, comenta.
A solidão pode se tornar mais intensa de acordo com os recursos exigidos para a recuperação do paciente, como acrescenta Mariana. “A depender do ambiente de internação, como uma terapia intensiva, restringe ainda mais o acesso até de atividades lúdicas como televisão e recursos de tecnologia”.
Como agem a ansiedade e o medo
“É uma mudança abrupta, de estar na rotina e, de repente, parar tudo que está acontecendo para ser cuidada por pessoas que não conheço e em um ambiente que eu não tenha familiaridade”, descreve Maria Cecília Alves, psicóloga clínica.
Mesmo com os esforços para tornar o ambiente mais acolhedor, a apreensão e a falta de autonomia, inerentes ao tratamento, prejudicam o equilíbrio mental dos pacientes. A situação se torna exemplo evidente de como os sentimentos não deixam de ser expressos.
“O medo faz com que meu corpo comece a ficar muito tenso, porque pode precisar fugir daquela situação, começa a acelerar meus batimentos cardíacos e a diminuir a frequência da minha respiração”, lista.
O corpo também responde à ansiedade como exposição a uma situação de estresse. O psiquiatra Matias Melo usa a analogia de uma prova escolar, que gera reações nos estudantes.
“Isso não tem problema nenhum, talvez eu possa me preparar melhor, mas a partir do momento que esse processo gera um sofrimento mais intenso aí a gente chama de transtorno”, pondera o especialista.
Cecília explica que estudos no campo da ansiedade mostram grupos mais vulneráveis aos prejuízos psicológicos causados pela doença. “Os idosos são mais suscetíveis a desenvolver algum tipo de transtorno pela própria fragilidade cognitiva que a idade vai trazendo, porque a gente vai ficando mais sensível”, frisa.
Já as crianças podem ser abaladas pelo desconhecimento dos processos da doença. “Pessoas que têm um nível socioeconômico mais baixo, que vêm de um contexto com menos recursos, vão estar mais vulneráveis a isso. Além de pessoas que já vivenciaram algum tipo de trauma, uma internação ou uma perda”, completa.
Medo de morrer
Socorro Alves, de 53 anos, acumula prejuízos psicológicos mesmo sem ter passado por internamento quando teve Covid pela primeira vez, em fevereiro de 2021. “Eu senti muita tosse, dor nas costas e aí veio o grande medo: morrer. A doença começou a evoluir com falta de ar, mas eu acredito que foi mais pela ansiedade”, reflete a professora.
Na busca por atendimento, encontrou hospitais com placas alertando sobre a lotação e precisou de assistência particular. “Eu fiquei doente dentro de casa, com medo, e depois fui atrás de um psicólogo. Fiz seis meses de terapia online, porque tinha medo até de sair de casa e pegar a doença de novo”, destaca.
Também foi necessário se consultar com psiquiatra devido à insônia, falta de ar e o medo constante. “Teve um período que eu esquecia as palavras. Uma vez eu não sabia escrever a palavra ‘importante’, então estou com encaminhamento para ir ao neurologista”, acrescenta sobre a rede de especialistas que a acompanham.
Parece que meus gatilhos estão todos armados, se houver qualquer situação desencadeia e volta tudo de novo
Com terapia e uso de medicação, as complicações psicológicas estão mais leves. O apoio e a imunização também aliviaram o impacto da segunda infecção em janeiro deste ano. “Quando eu tive Covid pela primeira vez, passei quatro meses em que eu ia me deitar e eu achava que não ia acordar no outro dia, por causa da ansiedade muito grande”
Cuidar da saúde mental
O psiquiatra Matias Melo frisa a relevância do apoio de especialistas em saúde mental para acompanhar sintomas como ansiedade. “A demora na busca por um tratamento pode resultar no agravamento dos sintomas, numa maior disfuncionalidade, a ponto de comprometer o bem estar físico e as relações sociais”, elenca.
Cecília Alves alerta para o prolongamento da dificuldade para convivência, sono e trabalho como indicadores para a busca de assistência psicológica e psiquiátrica.
Lembrar que é um processo, respeitar o tempo de cada um. Tem pessoas que vão conseguir fazer esse retorno de uma forma e tem quem vai precisar de mais ajuda, mais tempo e mais recursos. Essa cobrança pessoal de ficar bem depois de tudo que aconteceu precisa ser deixada de lado para respeitarmos o nosso tempo
A especialista também indica os cuidados com sono e alimentação, além de estabelecer uma rede de apoio com pessoas próximas. “O pós Covid é um movimento de se reconectar com a nossa vida que ficou parada e mudou muito”, analisa.
Conhecer o que torna a rotina mais agradável é a indicação da psicóloga Mariana Kolb. “A palavra de ordem é observação: o que traz prazer, fonte de bem-estar, o que te conecta e traz sentido da vida, desde uma corrida, uma boa leitura e ouvir músicas”.
Essas ações contribuem para evitar comportamentos abusivos, como consumo de álcool, sintomas obsessivos compulsivos e déficit cognitivo, entre os exemplos. “A pandemia é como se tivesse criado uma epidemia paralela com a intensificação e aumento do sofrimento psíquico e dos transtornos mentais”, conclui.
Onde procurar ajuda
Plantão Psicológico - ProVida (Sesa)
Por meio da plataforma digital Plantão Coronavírus, a Secretaria Executiva de Políticas de Saúde da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) implementou o ProVida.
O atendimento é realizado por psicólogos habilitados e capacitados em Primeiros Socorros Psicológicos de segunda a sexta-feira, das 7h às 19h.
O serviço pode ser acessado pelos seguintes canais: WhatsApp (85) 8439-0647, Telegram (@plantaocoronavirus), hotsite Coronavirus Ceará, chat pelos sites do Governo do Estado e da Sesa, além do Ceará App, disponível nas plataformas Android e iOS.
Plantão Psicológico - UFC
Por iniciativa do Laboratório de Estudos em Psicoterapia, Fenomenologia e Sociedade (LAPFES), a Universidade Federal do Ceará (UFC) oferta, de forma on-line, plantão psicológico gratuito. O serviço funciona às terças (de 14h às 19h) e sextas-feiras (entre 08h e 12h; e entre 14h e 19h).
Para solicitar vaga, é necessário preencher um formulário eletrônico no mesmo dia em que se busca receber o atendimento.
Às terças, o formulário para inscrições é aberto às 10h. Já nas sextas, é aberto às 7h, com atendimentos pela manhã; e às 10h, com atendimentos à tarde. A marcação prossegue até o preenchimento do número de vagas para a data.
Instituto Bia Dote
Organização não governamental e sem fins lucrativos que trabalha com a prevenção do suicídio, o Instituto Bia Dote oferece atendimento psicológico gratuito em Fortaleza para pessoas a partir de 12 anos. Interessados devem entrar em contato com a instituição pelo WhatsApp (85) 9 9842-0403.
Após o contato, é realizado um cadastro e o paciente entra em uma fila de espera. Em seguida, participa de uma triagem, a partir da qual pode ser chamado a fazer psicoterapia uma vez por semana, presencialmente, na instituição.