Uma perna “mais curta” do que a outra, uma cicatriz no rosto e várias na mente. Era janeiro de 2020 quando Ana*, 29, cometeu o que descreve como “pior arrependimento da vida”: pilotar uma motocicleta sem capacete. Três anos depois, as sequelas permanecem.
“Eram só dois quarteirões”, ela lembra, ao justificar a ausência do equipamento de proteção. Mas a distância foi suficiente para um carro em alta velocidade atingi-la. Restaram quatro meses de tratamento e uma certeza: “jamais andar ‘errada’ de novo, jamais”.
Por meio de dados, relatos e análises, o Diário do Nordeste aborda os chamados “fatores de risco” para acidentes graves: atitudes individuais com choques e efeitos coletivos.
Os 3 principais fatores de risco para acidentes de trânsito graves apontados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) são comportamentais, e se replicam no cenário de Fortaleza:
- Não uso ou uso incorreto do capacete;
- Não uso do cinto de segurança;
- Excesso de velocidade.
Na capital cearense essas infrações somaram quase 348 mil flagrantes em 2022, de acordo com dados da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC) solicitados pela reportagem. A imprudência gera uma média de 40 infrações por hora.
Os números mostram aumento expressivo em relação a 2021, quando os três comportamentos resultaram em cerca de 258 mil autuações. A AMC justifica que o período de lockdown na pandemia reduziu o fluxo e, por efeito, as ocorrências.
Foco nas motocicletas
No acidente de Ana* (que ainda sente “vergonha e culpa” e, por isso, preferiu não ser identificada nesta reportagem), o combo de imprudências dela e do motorista do automóvel quase foi fatal.
“Escapei das estatísticas por pouco, e as sequelas que fiquei foram até leves pra gravidade do acidente. Quando conheço alguém que anda de moto, digo logo que não cometa o mesmo erro que eu, use capacete, ande com atenção”, alerta a jovem.
O Relatório Anual de Segurança Viária de 2021 estima que 50% dos motociclistas na capital cearense morrem em até 1 km de casa, e 57% em até 2 km; mostrando que os percursos curtos aumentam a confiança na falsa ideia de segurança.
motociclistas e passageiros morreram em acidentes de trânsito em Fortaleza, em 2022, de acordo com a AMC, número menor que em 2021, que teve 86 vítimas. No total, 157 pessoas morreram nas vias da capital, 14,7% a menos em relação a 2021.
Apesar da redução, os usuários de motocicletas representaram quase metade das mortes, liderando a estatística com 49%, seguido por pedestres (42%), ciclistas (5%) e ocupantes de automóvel (4%).
No ano passado, mais de 5 mil motociclistas foram flagrados nas vias de Fortaleza sem o equipamento de segurança mais básico e importante. Pilotos e “garupeiros” dão rosto a 49% das mortes no trânsito na cidade, superando pedestres (42%).
Disraelli Brasil, assessor técnico da AMC, destaca que o aumento dos serviços de entrega e transporte por aplicativo intensificou o uso de motocicletas na cidade, exigindo “um olhar especial” dos agentes de fiscalização e prevenção aos pilotos.
O assessor ilustra, ainda, que o termo “acidente” tem sido substituído tecnicamente por “sinistro” devido a um motivo essencial, que não deve ser ignorado pelos condutores: “acidente era uma palavra muito neutra, como se eximisse da culpabilidade – e quando se adota comportamento errado, você assume o risco”.
Contar com o cinto ou a sorte
Enquanto Ana* atribui a sobrevida a “um milagre”, a manicure Bruna Monteiro, 34, não pestaneja ao definir o que a fez escapar ilesa de um acidente de trânsito no ano passado: “foi o cinto de segurança”.
Ela ocupava o banco do passageiro, voltando de uma festa, quando o carro dirigido pelo namorado foi atingido por outro veículo – que trafegava na contramão. O impacto deixou o trauma, uma marca roxa pela pressão do cinto no pescoço de Bruna... E nada mais.
ocupantes de veículos em Fortaleza não utilizam o cinto, segundo levantamento da AMC.
Segundo a OMS, utilizar o dispositivo reduz em até 50% o risco de lesões fatais para ocupantes dos bancos da frente do automóvel – e diminui em cerca de 75% a probabilidade de ferimentos graves em passageiros do banco traseiro.
Observar, por meio de pesquisas, o não uso do cinto de segurança, assim como outras infrações que comprometem a segurança viária, está entre as ações previstas pelo Plano de Segurança no Trânsito, lançado em junho de 2022 pela Prefeitura de Fortaleza.
Além de instituir o pacote de medidas, dividido em 4 eixos, a lei municipal nº 11.270 cria o Conselho Executivo de Gestão do Plano, composto por várias secretarias ligadas à estrutura e ao funcionamento da cidade.
Chegar rápido ou chegar bem?
Entre os comportamentos arriscados, o mais perigoso, letal e frequente em Fortaleza é o excesso de velocidade. De acordo com Disraelli Brasil, assessor técnico da AMC, é a infração mais registrada “e fator mais severo para gravidade de lesões”.
Uma das medidas implementadas para prevenir os sinistros inclui a capital cearense numa tendência mundial: a readequação da velocidade máxima permitida nas vias. Em Fortaleza, 50 avenidas já reduziram o limite de 60km/h para 50km/h.
A avenida Leste Oeste, que cruza bairros importantes da cidade, foi a primeira a receber a medida, em 2018. A via figurava entre as mais perigosas da capital, com média de 11 mortes em acidentes por ano. Em 2022, nenhum óbito foi registrado lá.
Um estudo realizado pelas autoridades de trânsito de Fortaleza mostrou que, em 16 vias com limite de velocidade reduzido para 50km/h, a média de acidentes com mortes caiu 68%. Acidentes com feridos diminuíram quase 19%; e os atropelamentos, 29,7%.
Dante Rosado, coordenador da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global no Brasil, aponta que a readequação da velocidade das vias é medida “antipática”, mas que deve ser ampliada – e, inclusive, amparada em futuras alterações do Código de Trânsito Brasileiro.
Desde 2021, a OMS foca a velocidade como principal fator de risco para acidentes graves no mundo: tanto pelo desrespeito dos condutores aos limites quanto pela prática de limites inadequados.
O especialista pontua que Fortaleza adotou, ao longo dos últimos anos, medidas importantes para segurança viária – como reforço de infraestrutura para pedestres e ciclistas –, mas ainda precisa avançar no que tange à readequação dos limites.
“Em 2021, houve um grande salto de implementação dessa medida. E ao longo disso, a população foi compreendendo. Percebe que não afetou o deslocamento, o cotidiano, e vai mudando a percepção e a resistência”, pondera Dante.
Vias de Fortaleza com limite de velocidade de 50km/h
- Av. Abolição
- Av. Américo Barreira
- Av. Antônio Sales
- Av. Augusto dos Anjos
- Av. Benjamim Brasil
- Av. Bernardo Manuel
- Av. Bezerra de Menezes
- Av. Borges de Melo
- Av. Carapinima
- Av. Cel. Carvalho
- Av. Dom Luís
- Av. Domingos Olímpio
- Av. dos Expedicionários
- Av. Dr. Theberge
- Av. Duque de Caxias
- Av. Eduardo Girão
- Av. Eng. Humberto Monte
- Av. Eng. Santana Júnior
- Av. Francisco Sá
- Av. Frei Cirilo
- Av. Gal. Osório de Paiva
- Av. Godofredo Maciel
- Av. Gomes de Matos
- Av. Hist. Raimundo Girão
- Av. Imperador
- Av. João de Araújo Lima
- Av. José Arthur de Carvalho
- Av. José Bastos
- Av. José Jatahy
- Av. José Leon
- Av. Jovita Feitosa
- Av. Juscelino Kubitschek
- Av. Luciano Carneiro
- Av. Monsenhor Tabosa
- Av. Parsifal Barroso
- Av. Pe. Ibiapina
- Av. Perimetral
- Av. Pres. Castelo Branco
- Av. Prof. Heribaldo Costa
- Av. Rogaciano Leite
- Av. Santos Dumont
- Av. Sen. Fernandes Távora
- Av. Universidade
- R. Alberto Magno
- R. Damasceno Girão
- R. Dr. Justa Araújo
- R. Gov. João Carlos
- R. Jorge Dummar
- R. Marechal Bittencourt
- R. Vereador Pedro Paulo
Para Dante Rosado, desenhar uma cidade mais coletiva é essencial para torná-la mais segura em termos viários – e para tentar zerar a média anual de 150 vidas perdidas em ruas e avenidas fortalezenses.
“Enquanto morrer uma, algo precisa ser feito. É preciso incentivar o uso do transporte coletivo, de bicicleta e intensificar a fiscalização, que não pode ser um tabu”, acrescenta, destacando também o papel da educação para o trânsito.
“As campanhas educativas não são para ensinar o que as pessoas devem fazer, mas para convencê-las de que as medidas feitas são importantes. Existe um problema: mortes e lesões no trânsito. E as soluções são essas. É disso que as pessoas precisam ser convencidas.”