O prédio, o palco, a estrutura. As luzes e todos aqueles camarotes, onde seis cupidos seguram guirlandas e escudos. As imensas colunas e o solene ar de nobreza e importância. Andressa Andrade, 22, traz essas minúcias à vista quando descreve a primeira vez que esteve no Theatro José de Alencar, há 10 anos. À época ainda criança, diz ter sido mágico o encontro. “Me enxerguei naquele palco sendo ovacionada por uma plateia imaginária. Os detalhes no teto, nas cortinas, me fizeram viajar”, confessa.
A curiosidade para conhecer o equipamento nasceu quando a estudante de Teatro leu um livro da escritora cearense Socorro Acioli, “A bailarina fantasma”, em que este ícone cearense é citado. E se estende até hoje, quando recorda da atuação no cobiçado tablado pela primeira vez, onde ela deu vida à Andréa, adolescente que sofria violência em casa pelo padrasto.
Foi no ano passado, com a peça “Máscaras”, dirigida por George Hudson e realizada pelo grupo favelArt. “Obrigada, TJA, por ter sido o lugar onde realizei meu sonho de atuar em um palco, de conhecer um camarim, de ser aplaudida”, exclama, não sem antes prometer algo. “Eu e esse velhinho ainda vamos fazer muita gente chorar e sorrir, vamos fazer história juntos”.
Corta para 1958. A ansiedade do público e o coração batendo em descompasso eram sentidos por Hiramisa Serra. Naquele momento, a atriz, hoje com 82 anos, igualmente fazia sua estreia nos palcos, interpretando Jacqueline em “A canção dentro do pão”. Espetáculo de Raimundo Magalhães Júnior, era o terceiro realizado pelo grupo Comédia Cearense, sob comando do esposo de Hiramisa, Haroldo Serra (1934-2019). O cenário: também o Theatro José de Alencar.
“Tenho muito apreço por esse lugar. Ele foi de fundamental importância para nós, artistas, e para a cidade”, diz a Dama do Teatro Cearense, perdendo a conta de quantas montagens o grupo que integra realizou no equipamento. “Por isso que, nesta data, meu desejo é que ele nunca feche as portas para a arte, esteja sempre dando todo o incentivo possível e permaneça sendo tão significativo”.
A data enfatizada por Hiramisa Serra é especial. Trata-se dos 110 anos de um dos mais apreciados cartões-postais do Estado, completos nesta quarta-feira (17). Por conta da pandemia do novo coronavírus, a celebração será inteiramente virtual, acontecendo durante todo este domingo (21), no canal do Youtube do equipamento da Secretaria da Cultura do Ceará.
A programação dá início a uma série de comemorações online que se estendem até o dia 5 de novembro. Disponível no site do equipamento, de forma completa, desde sábado (13), o roteiro, montado de forma coletiva com a sociedade civil, inclui atividades como homenagens, participações especiais e lembranças de momentos marcantes da história da renomada casa de espetáculos.
Ampliações
Diretor geral do TJA a partir deste ano, Pedro Domingues afirma que o espaço chega à efeméride ampliando a responsabilidade enquanto lugar de arte e cultura.
“Os desafios porque passa o país remetem, a meu ver, a um conceito inicial, em que a decisão pela construção do teatro se dá como marco civilizatório de uma cidade que se 'aformoseava' e aspirava ao status de desenvolvida nos moldes europeus de então, onde a existência de um teatro na cidade representava a imagem de uma sociedade que evoluíra social e economicamente”, avalia.
De fato, a construção do espaço entra em sintonia com nobres referências, sendo um exemplar característico do eclético período da arquitetura nacional, em que se agregavam especialmente as linhas neoclássicas e art nouveau. Uma resposta à altura da prosperidade que a economia do Ceará vivenciava desde o final do século XIX, a partir da cultura do algodão o que, consequentemente, desencadeou uma efervescência da atividade intelectual em Fortaleza.
“[A idealização do TJA] não se tratava de uma demanda cultural de grupos artísticos, como o foi o Grêmio de Carlos Câmara; ou um desejo de entreter a classe trabalhadora evitando-se a sedução comunista, como o foi o Theatro São José, mas um monumento erguido em ode ao desenvolvimento e à evolução social a que chegara à Capital”, elucida Pedro.
“Desta forma, o Theatro chega aos seus 110 anos como uma imagem de resistência em louvor a um ideal de civilização, hoje enquanto desafio de disputar imaginários de desenvolvimento relacionados à urbanização e ao uso dos espaços públicos no centro da cidade; de ampliar o acesso à produção e fruição cultural a toda a população de Fortaleza, revendo principalmente sua vocação enquanto símbolo-síntese de um projeto de cidade; e, finalmente, continuar reinventando-se para manter-se como espaço viável ao afeto dos cearenses e do povo brasileiro, posto ser patrimônio do Brasil e um bem do Ceará”, complementa.
Segundo o gestor, as mudanças estruturais pelas quais o prédio passou ao correr dos anos, para amplificar área e capacidade, até os diferentes âmbitos culturais que ele passou a contemplar, fazem-o estar sempre em voga na agenda cearense – menos no sentido de estar em lugar de destaque ou no espaço adequado à sua importância e significado, e muito mais na ideia de que encontrou, entre os silêncios e alaridos de sua existência, o fôlego necessário à sobrevivência da necessidade do lugar no imaginário da população.
“Sua capacidade em traduzir as políticas culturais enquanto lugar que materializa a necessidade e a crítica aos resultados das gestões culturais é, ao mesmo tempo, afirmação e denúncia do ideal cultural que a sociedade cearense constrói para si”, avalia.
Destaques
Nesse movimento, Pedro Domingues – cuja memória guarda tantas imagens fortes e afetivas da relação com o Theatro no posto de artista – destaca dois dos inúmeros feitos que considera marcantes na trajetória do equipamento. O primeiro, de cunho artístico e cultural, ocorrido na década de 1970: o evento Massafeira.
“Realizado em pleno período da ditadura, é comentado até hoje, numa louvação que me fala à imaginação como um woodstock cearense e que caracterizou-se por ter um enraizamento na memória cultural da cidade tão intenso que suas consequências se estendem até aos dias atuais”, sublinha.
A ação também marca um ponto de afirmação da produção artística, principalmente da música, catalisando O Pessoal do Ceará como principal ousadia da cultura local, imiscuindo-se nacionalmente como força própria num cenário excessivamente carioca e paulista, em plena ocupação baiana e com alguns lampejos mineiros e pernambucanos.
Outro feito que destaca é a intervenção na estrutura do prédio, levada a cabo no primeiro governo de Tasso Jereissati, a partir de 1986, quando Violeta Arraes adota a reforma e restauro do TJA como marco de sua gestão, recolocando-o como elemento vivo do diálogo da produção cultural com o país.
“As alterações técnicas, a incorporação do espaço Cena, a mobilização em torno de sua reinauguração e o impacto no imaginário da classe artística e política e da sociedade em geral provocam um ponto de inflexão, inclusive nas tensões quanto ao acesso da população ao equipamento. O diálogo entre o erudito e o popular ou o acesso universal à produção e fruição de bens culturais como reconhecimento de um direito natural tem, a meu ver, no esforço de reinvenção do TJA encampado pela Secretária Violeta Arraes e na dramaturgia da reinauguração, um marco simbólico do papel do Theatro”, diz.
Encarando o Theatro como um “bem do Ceará”, Pedro Domingues também elenca os desafios vivenciados pelo monumento. De acordo com ele, o principal é enquadrar-se aos novos sentidos que a produção de arte e cultura tem trazido, contemplando três matizes: tecnológico, social e artístico.
“Em termos tecnológicos, a busca por incorporar novas linguagens e melhorar sua estrutura de equipamentos; em termos sociais, ampliando o alcance das atividades para dialogar com segmentos específicos e diversos para além da fruição de espetáculos; e, em termos artísticos, ampliando a relação com produtores e grupos, investindo no desenvolvimento de serviços, atualização de técnicas, acesso a novas formas e conteúdos, estímulo à formação, novos artistas, intercâmbios e troca de saberes”.
Em suma, ampliando o relacionamento com a população por meio de diálogos direto com grupos e segmentos como numa relação próxima e cotidiana. Não à toa, as perspectivas para os próximos anos caminham tendo em foco sobretudo esta questão. Dentre as prerrogativas, há o desejo de mais uma obra de restauro, cujo projeto está em curso.
“Até 2022, também esperamos que o equipamento tenha suas estruturas atualizadas, a que vejo necessário, com urgência, acrescentar um projeto de tecnologia digital com instalação de estrutura de filmagem e transmissão de dados”, adianta.
Também almeja entregar, até o fim da gestão, um setor de informação e pesquisa que contribua com a memória do equipamento e das artes cênicas, além do levantamento de dados que auxiliem na avaliação e acompanhamento das atividades que o TJA é responsável, inclusive no âmbito da política cultural do Estado, como o Sistema Setorial de Teatros, do qual é co-responsável.
“A longo prazo, espera-se que o equipamento continue sendo a imagem do Ceará e para tanto, seja capaz de reinventar-se em diálogo permanente com seu tempo, a cada tempo”, sintetiza.
Multifacetado
E quais outras histórias se somam à sinfonia de vozes ecoadas no TJA (tombado em 1987 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN))?
Há o percurso de Silvero Pereira, por exemplo. O ator cearense, com projeção mundial, passou uma década convivendo pelos corredores do Theatro José de Alencar, sendo aluno no Curso Princípios Básicos, do qual, mais tarde, se tornaria professor por quatro anos.
“No Teatro Morro do Ouro, assisti ao primeiro espetáculo profissional de teatro, ‘O Destino a Deus Pertence’. Além de ter construído amizades que carrego até hoje, fiz inúmeras apresentações e diversos cursos técnicos que participei e que me auxiliaram na minha formação artística”, comenta.
Integrante do coletivo artístico As Travestidas – cuja gênese se deu no interior do Theatro por meio do convite de Izabel Gurgel, diretora em 2008, ano em que realizaram a temporada de “Cabaré da Dama”, reunindo os membros que hoje fazem parte do grupo – ele elenca os mais representativos espetáculos encenados pelo coletivo no grandioso tablado: “Uma Flor de Dama”, “Cabaré das Travestidas”, “Engenharia Erótica” e a primeira Transvirada.
“Não existe nenhum projeto no momento entre os dois, mas a gente (Travestidas) sabe que o Theatro é um espaço super aberto para nos receber, pois sempre existiu essa relação afetuosa”, afirma.
“Seu Zé, continue sendo um local de liberdade, de realização de sonhos! Sua estrutura centenária é linda e encantadora, mas nunca perca sua base humana acolhedora!”, diz o artista ao aniversariante.
Inclusão
A mensagem é semelhante a de Gabi Gomes, atriz e produtora do Cangaias Coletivo Teatral. Foi no José de Alencar onde ela primeiro subiu para se apresentar, de forma amadora e profissional.
“Em 2011, resolvi aflorar um antigo desejo de fazer teatro. Passando pela Casa de Cultura, no Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará, vi um cartaz informando sobre o início de uma residência em Teatro do Oprimido. Essa era a minha chance. O início de tudo, que logo emendou no Curso Princípios Básicos de Teatro”, contextualiza.
“O Theatro José de Alencar é esse início, de maneira apaixonada, olhos brilhando, sem saber muito bem onde tudo ia dar. Na conclusão do CPBT, nos apresentamos no Palco Principal, que honra! E que frio na barriga. Difícil descrever a sensação em palavras, mas certamente dizer que "foi mágico!" ajuda”, completa.
Integrante da novíssima geração de intérpretes teatrais do Estado, ela diz que a relação entre Cangaias e TJA é anterior ao seu posto no coletivo. “É um lugar muito importante, inclusive como formação. A maioria dos artistas que passaram pelo grupo também passaram pelo CPBT. Nos últimos anos, fizemos estreias de trabalhos no Theatro, como nosso mais recente espetáculo para a infância, 'O Regresso dum Barquinho de Papel’, e o espetáculo de conclusão do Curso Livre de Práticas Teatrais, ‘Tempo de Retirada’”.
Há muitos planos do Cangaias junto ao Theatro, segundo Gabi. A intenção é continuar levando os trabalhos do grupo para lá e pensar ações para continuar em parceria. “Estávamos no desejo de realizar a Mostra Experimental – que apresenta,de modo festivo, trabalhos desenvolvidos por nossos alunos do Curso Livre de Práticas Teatrais nas dependências do TJA, agregando um público diverso. Com o contexto atual, teremos que replanejar atividades, ações, retomar diálogos”.
Ao mesmo tempo, enumera ações de forma a fazer com que o lugar, tão querido, possa alcançar ainda mais pessoas. “Lembro, saudosa, dos programas desenvolvidos antigamente, que nos levavam pra cada ambiente do lugar, com horários específicos cada um, como o que os que ocorriam do Porão, já bem tarde da noite. No entanto, o que faria o Theatro estar mais presente na vida dos cearenses seria uma maior atenção do Governo com o entorno do TJA, maior atenção à segurança, à iluminação, à revitalização das praças dos arredores. O metrô já facilitou bastante, mas é preciso ainda outros olhares”.
Envolta por memórias e sede de mudanças para tornar tudo ainda mais simbólico e essencial, Gabi Gomes manda um recado ao mais-que-centenário equipamento:
“Zé, que bom que a sua história cruzou com a minha. Quantos sentimentos partilhados nos teus corredores! Quantos sorrisos, medo de pisar a primeira vez no palco, a emoção de realizar um sonho. Algumas frustrações, também. Acontece. Mas, ei! Vamos combinar de conversar sempre? Nós, artistas, te amamos! Pode ter certeza que juntos seremos e faremos melhor!”.
Serviço
Programação de aniversário dos 110 anos do Theatro José de Alencar
Neste domingo (21), no canal do Youtube do equipamento. Programação completa disponível no site do TJA