David Lynch, o cineasta do insólito, responde pelo argumento e direção deste polêmico "Cidade dos Sonhos" (Mulholland Drive), co-produção dele mesmo e do francês Alain Sarde e toda filmada em Los Angeles. Para quem, como Lynch, a normalidade é o imprevisto e o impensável, a arte cinematográfica só se afirma pela renovação radical dos recursos criativos de edição (sem a praga do excesso de cortes, alguns chegam a 4.000 em certas películas!) e pela ruptura com os padrões narrativos estabelecidos.
Isso não ocorre tanto em "O Homem Elefante" (1980) e "Uma História Real" (1999), mas principalmente na série de TV "Os Últimos Dias de Laura Palmer" (Twin Peaks, 1992), em "Veludo Azul" (1982), "A Estrada Perdida" (1997) e neste "A Cidade dos Sonhos". Vencedor em Cannes, como amplamente noticiado, Lynch foi indicado para o Oscar de Melhor Diretor e recebeu 4 Globos de Ouro por esta realização ímpar.
O entrecho cinematográfico
O argumento escrito por Lynch, visto por muitos como um quebra-cabeças (daí a promoção com prêmios oferecidos a quem mandasse artigos decifrando os enigmas do filme), subverte a unidade espaciotemporal, faz recuos e avanços na ordem dos tempos, ou seja, no é, no foi, no fora e no poderia ter sido - permitida aqui a analogia com os tempos gramaticais.
A ruptura inclui a presença de uma mesma artista para fazer dois personagens distintos (Beth e Diane), capazes de fundir-se num terceiro (Camilla), no delírio narrativo de uma delas, a segunda das quais morta, mas revivida exatamente pela alteração brusca na sequência de eventos imaginados por Lynch.
Assim, de uma vitória num concurso de "twist", Beth Elms vai para a cidade dos sonhos tentar o estrelato e chega lá com um casal de velhos companheiros de viagem (de repente tornados estranhos pelos olhares trocados a sós no táxi). A jovem é toda sorrisos, alegria, entusiasmo e estupefação por estar em Los Angeles e poder ficar na casa de sua tia ausente e tornar-se depois uma estrela. O corte seco nos leva a uma limusine negra penetrando lenta na "bela e sinistra estrada Mulholland" (palavras de Lynch) e daí para a colisão de automóveis na noite de verão.
Começa o labirinto
O desastre inesperado na estrada leva o espectador a acompanhar a sobrevivente, uma atriz, ainda aturdida e meio amnésica, antes mandada sair do carro sob a mira de um revólver, caminhando para esconder-se no matagal às escuras e depois, coincidentemente, na casa da tia de Beth. A tia está saindo de viagem, as portas da casa ficam momentaneamente abertas, Beth chega depois e começa o labirinto de Lynch para o qual não se tem todas as respostas, sequer todas as perguntas, e do qual tampouco se encontrará a saída. A partir dai várias tramas se entrelaçam permeadas de sedução, perdas e tragédias.
Muitas dúvidas do espectador não se resolvem e nem Lynch quer elucidá-las. Fazê-lo seria anular ou diluir-lhe os efeitos e tornar o filme "menos hipnótico, menos perturbador e menos excitante". Segundo Sérgio Augusto Andrade em "Bravo", tudo quanto os personagens vivenciam não são sonhos, mas simplesmente "a irrupção erótico-delirante do insondável sob a máscara de um narrador em crise".
Belas palavras, mas o filme pode ganhar outras leituras, capazes de levar-nos para caminhos diversos nos quais a complexidade dos sonhos, e dos sonhos dentro dos sonhos, nos arrasta para outros labirintos. De qualquer modo, como assinalou o articulista do "JB" no suplemento literário, Lynch concretiza com "Mulholland Drive" "uma das mais instigantes, provocativas e densas reflexões sobre a sociabilidade contemporânea e sobre a cidade dos sonhos - Hollywood".
A direção cinematográfica
A "mise-en-scène" de Lyhch conduz e controla os eventos de forma invulgar e competente. A minutagem precisa, os tempos mortos, os silêncios, as estranhas coincidências e as cenas propositadamente afetadas compõem um rico painel criado por um pintor de imagens em movimento.
Não há ineditismo, porém - e nem poderia haver - quando se fala de ritmo cinematográfico, montagem criativa, movimentos de câmara, angulações ousadas, planos-sequência, "close-ups", uso da grua, de lentes "zoom", etc. por parte de Lynch. Exemplos estão aí em filmes de Welles, Godard, no "Hiroshima" e "Marienbad" de Resnais, no "Mickey One", de Arthur Penn, no "O Segundo Rosto", de John Frankenheimer, ou na técnica espasmódica de Kubrick ao narrar o assalto ao hipódromo em "The Killing", para ficarmos só nestes nomes.
A diferença e o sobressalto estão no filme na maneira como Lynch, valendo-se dos recursos mecânicos do cinema, conta a história de "Mulholland Drive", e isso resulta num celuloide perturbador, superando em muito o não menos instigante "A Estrada Perdida". Da direção cinematográfica é possível destacar alguns momentos preciosos: as duas minissequências de lesbianismo entre Camilla (tão expressivas quanto as de "Aimée & Jaguar", de Max Farberbock) e Beth, e a cena de masturbação feminina de desespero, breve, mas intensa, pela perda da amada.
Igualmente, a cena surpreendente da mulher morta na cama (só mais tarde sabemos do suicídio) e depois viva, chamada pelo "cowboy" para acordar. Recordem-se também algumas filigranas: quem atende ao fone não é visto, quem chama também está de costas, ouvem-se apenas vozes monocórdicas com informação curta e seca, um velho sentado em silêncio numa enorme cadeira é quem dá as ordens, uma vidente inoportuna bate à porta de Beth para avisar sobre algo errado, e a presença insistente da síndica não tarda a encher o espectador de um vago pressentimento.
As cenas concebidas por Lynch parecem estar sempre prestes a revelar algo estranho ou bizarro para o qual o espectador nem sempre está preparado para ver ou entender. Elementos surrealistas e oníricos se insinuam aqui e ali, enquanto surge uma vertente de humor ora irônico (como quando o gigante chama por Kesher e bate na mulher e no amante desta) ora negro (quando o pistoleiro trapalhão mata três pessoas e atira num aspirador de pó para surpreender-se com o alarme no sistema elétrico do prédio).
O beijo de Chad Everett em Naomi (representação de uma representação), durante o teste cinematográfico, deixa uma sensação de estranho desconforto, ao mesmo tempo um dos mais eróticos do cinema na opinião de Sidney Pollack, conforme a edição inglesa da "Première" deste mês.
Do anúncio de casamento no jantar próximo ao final, quando outra mulher beija amorosamente a boca da noiva, passamos via corte brusco para a xícara quebrada na lanchonete, partindo-se daí para a cena delirante na qual o casal dê velhos reaparece numa alucinação liliputiana de Diane, visto por ela passando sob o umbral da porta para, depois do suicídio, terminarmos com uma mulher estranhamente vestida a dizer "silêncio"...
Cinematografia
A fotografia em cores a cargo do mestre Peter Deming se ajusta eficazmente à criação do contexto visual dentro do qual se cruzam as vidas de tantos personagens, maiores ou menores. E por qual motivo a escolha dessa estrada? "Porque", responde-nos Lynch, "de um lado se avista o Vale de San Fernando e de outro, Hollywood. Ela me dá uma sensação de profundo mistério. Pacífica e linda às vezes, doutras completamente misteriosa e com elemento muito claro de medo".
Assistimos a um trabalho de primeira, seja na captação de uma Los Angeles vista de Mulholland Drive à noite, com luzes semelhantes a uma miríade de estrelas, seja no "plongé" vertical em movimento sobre o topo dos edifícios da metrópole, seja ainda na visão de sombras fugidias na cena do antológico encontro de Kesher com o enigmático "cowboy", de início quase a escuridão, a lâmpada piscando do alto para logo acender-se plena, com zumbido característico, enquanto não chega o proprietário (?) do rancho, e começam os diálogos, e as intenções deste e as respostas parecem levá-los a lugar nenhum. Da mesma forma, nas imagens dos interiores, quando da semi-obscuridade Deming passa sutilmente para cambiantes mais vivas.
A limusine negra percorrendo lenta, e por duas vezes com personagens diferentes, a neblina da noite captada via banco traseiro, os faróis iluminando a estrada Mulholland e, de fora do veículo, a câmara montada na grua focaliza o carro por trás e sugere o suspense de algo iminente e aterrador. Muito tempo levaríamos para registrar os méritos do "cinematographer". Basta lembrar os pontos sobresselentes da iluminação.
Música e efeitos sonoros
Contribuição valiosa para o conjunto qualitativo de um filme, a música, quando bem ajustada às solicitações do entrecho, suscita sempre emoção intensa. Em"Mulholland Drive" ela lembra um réquiem ou um noturno de dias sombrios e desenvolve, com quer Sérgio Augusto, "um ruído grave e sugestivo ao fundo, como se todos no filme tivessem entrado sem querer, sozinhos, numa câmara de eco enorme e escura"...
Tudo isso resulta da combinação do talento do maestro e compositor Ângelo Badalamenti, com acordes do próprio Lynch, e o adágio de cordas de Samuel Barber. Não há portanto uma linha melódica definida, clara, mas o efeito obtido é dos mais persuasivos para os fins colimados pelo realizador. Rebekah dei Rio - "voz de anjo latino inacreditável", segundo Lynch - canta a versão espanhola de "Crying" até cair no chão, mas a voz continua sendo ouvida, enquanto ela é retirada do palco por dois funcionários do teatro.
"No hay banda, todo és una gravación", diz o agressivo mestre de cerimônias para as duas mulheres da platéia (Diane e Camilla ou somente Diane?, pois os dois rostos praticamente se fundiram quando elas saem apavoradas com o cadáver malcheiroso da casa 17). O plano da expressão sugere a idéia segundo a qual tudo é falso na cidade dos sonhos. Aliás, a gravação feita na residência de Lynch é a do filme, e a sugestão é reforçada pela voz da "crooner" do quarteto cantando em "playback" uma melodia dos anos 70, quando o diretor Kesher e a aspirante a atriz, Beth, trocam olhares significativos.
Como não há explicação razoável - nem talvez se deva buscá-la para as coincidências nem respostas para tudo, como já referido, o filme continua mais perturbador e aguçando nossa curiosidade para vê-lo outras vezes. Em verdade, música e efeitos sonoros se combinam harmoniosamente. Em entrevista em Cannes, ano passado, Lynch destacou a conquista definitiva do som no cinema, não uma mera realização de caráter histórico, mas algo transcendente, determinador da superioridade do filme sonoro sobre o filme mudo.
Por isso mesmo, além de levar-nos a repensar o ruído e a voz no cinema, como acentuaram alguns críticos, os filmes de Lynch conseguem recuperar, com pouquíssimas outras realizações, a relação entre narrativa e música. Detalhe interessante é o do som produzido pela misteriosa caixa azulada dentro da qual a câmara mergulha em "zoom" acelerado, em plano negro, como se fosse em busca de outra realidade, "além da imaginação" como diria Rod Serling.
Tem participação menor, mas significativa, assim corno todo o restante do elenco, cada um deles contribuindo para a busca da homogeneidade dos componentes do conjunto. Cabe lembrar aqui, novamente, o misterioso "cowboy", o apresentador do teatro "Silêncio", o gerente do hotel de segunda onde se hospeda Kesher, os dois mafiosos do inacreditável encontro com o diretor, os dois coprodutores e o agente, o atônito garçon desse encontro, o personagem temeroso de encontrar, na realidade, o mendigo hirsuto com quem sonha, espécie de mitológico lobisomem, a figura impassível do estranho homenzinho a dar ordens de uma cadeira bem maior, cercado por vidro protetor, e a mulher sisuda com quem Diane troca de apartamento.
Lynch não é nenhum charlatão, com afirmou equivocadamente o Rubens Ewald Filho.Não pode ser denominado assim quem fez filmes como os já citados de sua filmografia. "Cidade dos Sonhos" é filme do melhor quilate, pouco importando se alguém não o apreciou ou se conseguiu ou não juntar as peças do "puzzle" proposto por Lynch em mais outra incursão do insólito no cinema.
Os Intérpretes
A condução dos atores é firme e consistente com o comportamento dos personagens, às vezes desconcertante, propositadamente afetado, artificial.
Naomi Watts, excepcional, rouba o espetáculo fazendo dois papéis em tempos díspares - Beth Elms, em busca do estrelado em Hollywood, e a garçonete Diane Selwyn, amante de Camilla Rhodes, e contratante do pistoleiro para liquidar quem pôs fim à relação homoerótica e pretende casar-se com o diretor.
Beth e Diane nunca se encontram. Laura Darring (ex-Miss EUA) marca sua presença e não só pela sua beleza e sensualidade, enquanto Justin Theroux, sempre de roupa preta e óculos escuros, é o cineasta caçado por mafiosos, os quais conseguem "deletar" seu saldo bancário e cortar-lhe o cartão de crédito. Sua afinidade com as exigências de Lynch é encomiável.
A veterana Ann Miller, no papel de Coco, mãe de Kesher, ex-beldade americana dos anos 50, tem participação menor, mas significativa, assim corno todo o restante do elenco, cada um deles contribuindo para a busca da homogeneidade dos componentes do conjunto.
Cabe lembrar aqui, novamente, o misterioso "cowboy", o apresentador do teatro "Silêncio", o gerente do hotel de segunda onde se hospeda Kesher, os dois mafiosos do inacreditável encontro com o diretor, os dois coprodutores e o agente, o atônito garçon desse encontro, o personagem temeroso de encontrar, na realidade, o mendigo hirsuto com quem sonha, espécie de mitológico lobisomem, a figura impassível do estranho homenzinho a dar ordens de uma cadeira bem maior, cercado por vidro protetor, e a mulher sisuda com quem Diane troca de apartamento.
Lynch não é nenhum charlatão, com afirmou equivocadamente o Rubens Ewald Filho. Não pode ser denominado assim quem fez filmes como os já citados de sua filmografia. "Cidade dos Sonhos" é filme do melhor quilate, pouco importando se alguém não o apreciou ou se conseguiu ou não juntar as peças do "puzzle" proposto por Lynch em mais outra incursão do insólito no cinema.
* Artigo originalmente publicado no dia 21 de julho de 2002, no suplemento Cultura do Diário do Nordeste.