Símbolo de resistência, espetáculo “Cabaré das Travestidas” completa 10 anos com apresentação online

O espetáculo ‘Cabaré das Travestidas’ completa 10 anos em 2020 e, para comemorar, o coletivo cearense realiza apresentações virtuais nos dias 2 e 3 de setembro

Desde que fundou o coletivo artístico As Travestidas, lá no início dos anos 2000, o ator Silvero Pereira jamais pensou em alcançar a repercussão nacional que hoje tem. Símbolo de resistência e diversidade, o grupo comemora, nesta semana, 10 anos do espetáculo ‘Cabaré das Travestidas’, com apresentações virtuais nos dias 2 e 3 de setembro. Além do espaço online, outra novidade da peça é fazer referência ao reality show estadunidense RuPaul's Drag Race com uma competição de drag queens

“Essa ideia surgiu como uma forma de atrair o público. No seriado, eles tiveram de se adaptar nessa temporada por conta da pandemia e foi totalmente online, então resolvemos brincar com essa referência e cada uma produziu em casa sua apresentação”, conta Silvero. 

O espetáculo reúne música, dublagem e deboche em uma homenagem ao teatro de revista. Na brincadeira da competição entre as drags, a apresentação fica por conta de Mama Gi, a Gisele Almodóvar, de Silvero. Deydianne Piaf (Denis Lacerda), Mulher Barbada (Rodrigo Ferrera), Karolaynne (Italo Lopes), Betha Houston (George Hudson), Yasmim Shirran e Patrícia Dawson entram na disputa para conquistar o título de Queen. E quem vota? Os espectadores pelo chat virtual

Assim como aconteceu com tantas outras produções artísticas neste ano, as comemorações do aniversário sofreram mudanças por conta da pandemia. Silvero conta que, inicialmente, o plano era realizar uma programação diferenciada ao longo do ano. “Foi muito doloroso pra gente ter que, no momento de celebração desse coletivo tão expressivo aqui no Ceará, fazer alterações, mas foi necessário”, pondera.

Adaptação 
Para Silvero, as adaptações foram fundamentais para que “a gente continue em movimento e consiga sobreviver a esse período tão difícil. Temos buscado essas alternativas e acho que tem dado certo, o que é mais difícil nesse momento é convencer o público de que essa nova experiência pode sim funcionar, que tem jogo cênico, tem interação e que as pessoas também podem se abrir pra esse novo espaço”, aponta. 

Essas alternativas foram inclusive uma forma que o coletivo encontrou em meio às dificuldades financeiras enfrentadas pela classe artística neste período. “Existe uma diferença muito grande entre mim, um artista privilegiado que tem conseguido trabalhar no meio dessa pandemia, e uma série de outras pessoas que trabalham comigo que não estão nesse mesmo lugar, que têm mais dificuldades. Embora o teatro esteja parado, a arte precisa continuar se movimentando e a economia acontecendo”. 

Entrar na cena do ambiente virtual já vinha sendo uma experiência. Em junho, o artista apresentou adaptação do espetáculo ‘Metrópole’ ao lado do também cearense Gyl Giffony e, no início de agosto, estreou o monólogo ‘Bixa Viado Frango’, um texto construído especialmente para o ambiente online. A partir disso, Silvero começou a pensar em como fazer As Travestidas nesse espaço. 

“A gente pensou em como poderíamos continuar trabalhando e produzindo. Como é um grupo maior, teríamos mais dificuldade por conta da conexão do teatro. A gente ficou sem saber como produzir, até que começamos a ver outras produções acontecendo em plataformas de vídeo chamada e enxergamos essa possibilidade”, explica Silvero. 

Transformações 
Há mais de 10 anos, quando começou a fazer da arte uma expressão de identidade, Silvero não fazia ideia da potência e da representatividade que o coletivo teria para os LGBTs cearenses. Ele conta ter iniciado de uma maneira muito despretensiosa, a partir de uma inquietação pessoal. “Me provocava muito olhar pra classe artística e ver a quantidade de colegas que eu tinha, mulheres e homens transexuais, que acabavam abandonando o teatro por se sentirem excluídos dessa arte que é tão permissiva e, ao mesmo tempo, tão violenta naquela época”, relembra. 

Dos questionamentos, vieram as vivências com movimentos sociais, como a Associação de Travestis do Ceará (ATRAC) e do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB). “Ingressei nesses grupos, entendi um pouco da luta e comecei a trabalhar junto com eles. Fui sendo puxado pra essa questão da militância de maneira muito intuitiva, não foi nada proposital e, quando vi, eu já estava nesse espaço e, hoje, eu não consigo desassociar essa relação da arte com a reflexão”. 

De lá para cá, muita coisa mudou, conforme Silvero. Tanto no que se refere a questões de gênero, de diversidade, de respeito, quanto na questão jurídica, da garantia dos direitos. No entanto, lamenta: “não estamos no lugar ideal, ainda somos um Estado extremamente violento contra pessoas LGBTs, vemos diariamente diversos casos de transfobia, de lgbtfobia e de assassinatos”. 

“Hoje é possível ver um número maior de atores e atrizes transexuais se fortalecendo dentro da arte” Silvero Pereira - Ator e fundador do coletivo As Travestidas

Apesar disso, visualiza o legado das Travestidas. “No meio artístico especificamente, hoje é possível ver um número muito maior de atores e atrizes transexuais se fortalecendo dentro da arte e mantendo sua identidade, não abrindo mão dela pra trabalhar como artista”, celebra. 

Para Rodrigo Ferrera, intérprete da Mulher Barbada, o Cabaré das Travestidas “é uma grande celebração das nossas vidas, das nossas histórias, da nossa forma de arte. Foi um rito de passagem e foi quando eu me descobri travestida, fico muito orgulhoso desse fato”. Rodrigo participou do elenco do espetáculo antes mesmo de entrar para o coletivo. 

“O Cabaré das Travestidas é uma grande celebração das nossas vidas” Rodrigo Ferrera - Ator 

Pandemia e planos 
Em isolamento social, Silvero conta ter passado por um momento de muita introspecção durante o período, como artista e como pessoa na vida privada. “Acho que isso mudou a nossa maneira de se relacionar, mas acho que esse lugar do introspecto fez principalmente a gente perceber as pessoas com quem a gente pode contar, os amigos que a gente tem, os aliados que estão do nosso lado, que estão dispostos a ouvir”. 

Além disso, o ator enxerga a ocupação do ambiente virtual pela arte como um mecanismo que veio para ficar. O audiovisual e a música, por exemplo, já vinham explorando o streaming há anos e, com a pandemia, é a vez de outras linguagens artísticas se apropriarem da ferramenta. Silvero pontua a importância de se adaptar à nova modalidade. 

Por isso, a próxima programação prevista do coletivo é uma live do Bloco das Travestidas, projeto realizado há cinco anos durante o Carnaval em Fortaleza. Silvero adianta ainda que, em setembro, pretendem fazer uma apresentação em drive-in. 

Em 10 anos de espetáculo, as realizações foram muitas e, para o fundador, o gostinho é ainda mais especial. “O coletivo é uma grande família pra mim, um grande encontro de amizade, respeito e felicidade mesmo, pois existe muita conquista, não só coletiva como individualmente. São carreiras que acontecem sozinhas e também em conjunto e eu acho que isso que é o mais importante pra mim”, conclui. 

Serviço
10 anos - Cabaré das Travestidas 
Dias 2 e 3 de setembro, às 20h, em transmissão ao vivo no aplicativo Zoom 
Ingresso: R$20. Compra pelo site