Segundo mestre Gilmar de Carvalho (1949-2021), no fim dos anos 1950, o comércio de Fortaleza já vendia aparelho televisivo, antes mesmo de uma estação de TV operar na cidade. A primeira emissora só chegaria em 1960, mas a novidade tecnológica adiantava o desejo por adquirir o aparelho.
Naquele momento, existiam duas formas de adquirir uma General Electric tinindo de nova. Pagando consórcio ou participando de sorteio. Quem não tinha condições financeiras, o jeito era se aventurar como "televizinho" (termo carinhoso para quem ia ver os programas nas casas dos outros).
Esta e outras fascinantes histórias são contadas no livro "A Televisão no Ceará (1959-1966): Indústria cultural, consumo e lazer". A obra assinada por Gilmar de Carvalho também explica como a publicidade local seria impactada a partir da criação do Canal 2 (a extinta TV Ceará).
Descreve o autor que o estabelecimento dessa nova mídia impulsionou a publicidade local. Gradualmente, novos padrões de consumo. Naquele momento pioneiro, os "reclames" eram feitos ao vivo, na raça. Passaram as décadas e propagandas televisivas ganharam o cotidiano dos cearenses. A criatividade permitiu que inúmeros produtos e serviços da região chegassem aos lares.
Xarope, lojas de departamento, serviço de lava-jato, móveis, alimentos, calçados... Jingles e bordões clamavam pela atenção e desejo dos telespectadores. Algumas das marcas deixaram de existir, mas sua publicidade segue firme na imaginação. Alguns vídeos transmitidos entre os anos 1980, 1990 e 2000 circulam hoje na internet.
Mergulhamos no umbral do mundo online e selecionamos alguns dos comerciais cearenses que marcaram época.
'Querida mamãe...'
Desde 1985, quando os versos "Querida mamãe. Querido papai..." surgem na telinha, instantaneamente, adultos e pequenos sabem que o Dia das Crianças se aproxima. Exemplo de sucesso na propaganda local, o jingle "Pá-Pé-Pio" segue no ar até hoje, cativando clientes e afagando o coração dos nostálgicos.
Outra presença constante na memória de quem ultrapassou a casa dos 30 é o reclame do xarope "Castaniodo". A lista de enfermidades atendidas pelo medicamento é avisada no começo da propaganda.
Se seu filho estiver com sangue ruim, hemorroida, caganeira, pereba, garganta inflamada ou qualquer outra indisposição, tome Castaniodo".
Quem anunciava a solução para estes males era o ator cearense Wilson Aguiar (1917-1989). Da comédia ao rádio, Wilson também construiu carreira na TV do Sudeste. Seu personagem mais lembrado (sendo referenciado no comercial do xarope) era "Nezinho do Jegue", da novela “O Bem-Amado” (1973).
Nos anos 1980, uma trilha sonora produzida ao som do sax cativou mentes e ouvidos. Kenny G? Vangelis (em Blade Runner)? Nenhum destes artistas conseguiu rivalizar com o tema da loja Eugênio Móveis. Brincadeiras de lado, uma carinhosa curiosidade cerca a autoria da música.
Conta-se que a composição "The Theme from Cristiane" foi composta em 1988, pelo proprietário José Eugênio, para sua esposa Cristiane. O som continua inconfundível e nos leva imediatamente ao passado. Basta fechar os olhos, ouvir o sax para uma locução com o endereço "Av. Jovita Feitosa, 3110" saltar na mente.
'O gerente endoidou'
No território das propagandas feitas com desenho animado, um trabalho permanece irretocável para inúmeros fortalezenses. É quando dois queridos fusquinhas entram em cena: Polidinho e Sujinho. Vendo o companheiro naquela situação, Polidinho parte na aventura de levar o colega até o lava-jato em que ele se embeleza. Com o apoio, Sujinho também se torna um "Polidinho".
A aventura ainda se encerra com o clássico: "E rodaram felizes para sempre. U-huuu, oooba". A campanha dos fusquinhas atravessou três décadas de exibição.Já nos anos 1990, a campanha "Segunda-Feira Maluca" tinha direito a um gato azul na propaganda e tema musical pop, assinado pelo compositor cearense Amaro Pena.
O comercial do Leite de Cabra do Lar Antônio de Pádua (2000) inaugura o novo milênio. A cena da curiosa garotinha perguntando sobre a origem do alimento ganhou ares de meme, anos antes do atual contexto online. Outro jingle memorável do período trazia até coreografia, com pacotes de arroz sambando por cima do fogão.
Quentin Tarantino usou os minutos iniciais da composição "Ironside" no filme "Kill Bill" (2004). Toda vez que o trecho era tocado, era o anúncio de uma surpresa para a heroína. Criada por Quincy Jones em 1971, a faixa fez fama na televisão dos EUA por ser abertura da série policial de mesmo nome.
Porém, antes do famoso cineasta usar como recurso narrativo, o tema foi ouvido nos intervalos comerciais do Ceará. Os minutos iniciais da composição instrumental era usado para anunciar as liquidações da Esmeralda. No vídeo, enquanto uma sirene de alerta ecoa, um gerente corre alucinado entre as peças.
A partir do slogan, “O gerente endoidou e o preço baixou”, o público tinha a certeza de que encontraria preços baixos.Inspirado pelo bordão, Gilmar de Carvalho escreveu a obra "O gerente endoidou" (1982). O livro reúne artigos e reflexões sobre a história da publicidade cearense passada e recente.
Memória preservada
Boa parte desse acervo audiovisual foi acessado graças a canais de YouTube especializados em resgatar peças publicitárias do Brasil. Trabalho de fãs nostálgicos, diga-se. Mas 2022 reservou uma boa notícia à memória da publicidade cearense. Em janeiro deste ano, o acervo de uma das mais importantes agências do Estado foi entregue ao Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS).
Entre julho de 1965 e 2013, a Scala escreveu história singular no mercado Norte e Nordeste. Por lá passaram profissionais como Angela Borges, Barroso Damasceno, Carlos Paiva, Maurício Silva (sócio), Braz Henrique Marçal Theóphlilo (sócio), Dodora Guimarães, Hélio Catunda, Augusto Pontes, Paulo Linhares, Raimundo Gadelha, Chico Bruno, Zé Albano, Margarida Giffoni, Luciano Miranda, Ricardo Alcântara, Eduardo Odécio, Norton Lima Jr., Silas de Paula, Giacómo Brayner. E, claro, o professor e pesquisador Gilmar de Carvalho.
Segundo o herdeiro Renan Damasceno, o acervo doado conta com mais de três mil campanhas criadas, produzidas e veiculadas desde o início dos anos 70, 80, 90 e 00. Tem mídia impressa, jingles (áudio) e filmes e imagens nos mais diversos formatos (Umatic, Betamax, 16mm etc... ). 29 caixas foram inventariadas, protocoladas e entregues ao MIS. "Nossa ideia é que tudo seja tratado, digitalizado e exposto ao público pela memória da comunicação cearens, explica Renan Damasceno.