Rapper Má Dame alia hip hop, educação, posicionamentos políticos e poesia na arte

Cria dos saraus, artista tem lançamento de mixtape previsto para o segundo semestre e vem circulando em shows pela Capital

Do rap e reggae que ouvia em casa, na zona oeste de Fortaleza, à prática da mãe de registrar pela fotografia o cotidiano da família, o contato da rapper cearense Má Dame com a arte foi se construindo de maneira natural em direção, especialmente, à poesia — seja no movimento dos saraus ou nas apresentações de hip hop.

Em 2024, quatro anos após lançar o primeiro EP da carreira, a artista têm circulado no último ano com shows que mesclam os repertórios de “No Fio da Navalha” (2020) e da ainda inédita mixtape “Codinome Rosatômica”, prevista para o fim do ano. No próximo dia 13, a rapper se apresenta no Dragão do Mar.

“Compreendi que o que eu fazia era poesia”

“Minha família sempre ouviu muito rap e reggae, sempre fez parte. Lembro que minha mãe tinha o compromisso de sempre ter câmera e fotografar o cotidiano da gente. Isso fez com que eu tivesse a sensibilidade das minhas referências, até de letras, serem de coisas visuais”, partilha Má Dame.

Ela lembra de, ainda na infância, conhecer de Eminem — a partir das fitas que um amigo de um primo quatro anos mais velho havia dado — a Racionais MC's —quando o mesmo primo comprou o DVD “1000 Trutas 1000 Tretas". “Era a nossa aventura ficar assistindo Racionais”, descreve.

O acúmulo de inspirações levou Má Dame, ainda criança, a enveredar pela escrita. “Naturalmente sempre gostei de poesias, acho que peguei do rap, mas na minha infância não tinha essa noção. Com 7, 8 anos, gostava de escrever, de rimas”, aponta.

Quando descobriu o movimento de saraus, já adolescente, encontrou junta a veia política que já pulsava em si. 

“Sempre escrevi poesia na escola, mas só saindo do Ensino Médio compreendi de fato que existiam poetas, que o que eu fazia era poesia e que poetas não estão mortos. Esse pensamento se politizou dentro de mim e encontrei os saraus. No momento em que entendi poesia, já comecei a fazer em forma de letra de rap”
Má Dame
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Foi em 2017 que Má Dame começou a frequentar eventos de poesia tanto de Fortaleza quanto do interior, como o Sarau da Okupação, no bairro Antônio Bezerra, e o Slam da Quentura, em Sobral.

Mediação e educação social em cena

Em diálogo e conjunção com o caminho artístico, Má Dame também atua como mediadora e educadora social. “Comecei a dar oficinas de rima, utilizando atividades que eu já desempenhava no palco de forma educacional. Já a educação social mais ativa iniciei antes dos saraus, através da capoeira, como instrutora”, contextualiza.

“Meu foco principal, desde o início, é a possibilidade de diálogo, de as crianças terem aula de capoeira com uma travesti e a gente poder ter respeito”, atesta. Atualmente, a artista se soma ao Coletivo Barramar, que atua na região da Barra do Ceará.

“Desempenho pautas a respeito da população LGBTQIAP+, as crianças identificam na família, na rua onde moram, pessoas que são como a gente, como eu. Vou buscando, de acordo com a faixa etária, a forma que pauto. É sempre na busca de um diálogo bem horizontal”
Má Dame
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“No Fio da Navalha” e referências

O caminho dos saraus aos palcos foi mais um movimento natural para a artista. “Quando comecei, já tinha as letras de rap, as poesias que recito no show, como ‘Holocausto Capital’, que fiz em 2017 e lancei no EP em 2020”, contextualiza.

Todas as músicas de “No Fio da Navalha”, inclusive, foram escritas nessa mesma época. “Iniciei as produções (das faixas) em 2018, mas naquele tempo eu não tinha tanta oportunidade de shows, era mais ativa nos saraus em si do que nos palcos, aí foram dois anos juntando recursos e possibilidades para fazer (o EP)”, narra.

As inspirações para construir o trabalho, explica Má Dame, foram “todo esse produto que a gente chama de ‘underground’ da nossa cultura”. “Consumi muito da rua, minha referência sempre foi esse expoente da rua”, aponta a hoje moradora do bairro Quintino Cunha.

Artistas visuais como Fluxo Marginal — que fez as capas dos singles e do EP da rapper — e Blecaute, fotógrafas como Bia Souza — do mesmo bairro de Má Dame — e nomes da música como Zabeli e Mateus Fazeno Rock — também “frutos de saraus”, como define — são citados como referências da obra.

“Coletivizar pra conseguir espaços”

Os nomes elencados pela rapper compõem uma cena artística diversa e de forte apoio mútuo, seja entre linguagens distintas ou na mesma. “Acho muito original essa resistência de Fortal e da região metropolitana de tentar coletivizar pra gente realmente conseguir espaços”, avalia.

Um exemplo prático, ela divide, está no diálogo que ela e Zabeli — hoje parceira de Má Dame no grupo de rap Subver$ão Fortal, formado ainda por Lunática e DJ Nandi — tiveram para conseguirem acessar, juntas, palcos da Capital.

“Sempre que me chamavam pra uma line ou festival, não chamavam ela. Se chamavam ela, não me chamavam. Daí, sempre que chamavam só uma, a gente chamava a outra pra fazer participação”, afirma.

Para a artista, fortalecimentos individuais e coletivos andam juntos na cena. “Existe diálogo e isso vai fazendo com que um vá percebendo e entendendo o espaço do outro, da outra, ao mesmo tempo que a gente vai conseguindo evoluir pessoalmente”, atesta.

A coletivização para acessar espaços em conjunto esbarra, no entanto, em estruturas “engessadas” das políticas culturais, como observa Má Dame. “A maior parte (dos problemas) é por gerenciamentos que não entendem nossas atividades. Isso dificulta contratações, diálogos”, considera.

A artista reconhece algumas práticas positivas no setor público, citando exemplos como o Dragão do Mar e o Porto Dragão. “Hoje em dia, a gente consegue ter diálogo e agilidade com pagamentos em alguns equipamentos, mas a negação do diálogo que outros ainda fazem é uma das principais dificuldades”, aponta.

"Pra nós, é no fiado"

Pelo formato de contratação em diferentes equipamentos, Má Dame exemplifica, o pagamento de shows ou outras atividades ocorre às vezes em até dois ou três meses após a realização do evento.

“Se eu vou fazer um show, eu vou precisar de dinheiro para o transporte da minha equipe. Pra nós, é no fiado e isso precariza até a forma como a gente se locomove para o local. Isso faz com que artistas de sarau precisem pular catraca pra fazer uma apresentação”, ressalta.

Na avaliação da rapper, uma forma de conseguir driblar os desafios deste contexto é, a partir da própria produção, comercializar algo em paralelo: “Por exemplo, um artista de tela levar uma arte dele para uma estampa de camisa e fazer a venda das camisas”.

“O que a gente conseguir fazer em paralelo ao que produz dá para criar uma possibilidade de viver do que faz, mas os círculos artísticos para as culturas de ruas — batalhas de rap, movimentos de reggae — são precarizados”, reforça.

“E para quem faz uma coisa rua como eu, como alguém que faz uma tela que retrata ruas de favela ou como alguém que faz uma fotografia que retrata casas sem reboco, o que seria o comércio disso?”, provoca a artista.

“Falando de Fortaleza, não saberia o que é viver de rap onde não existe um comércio ao redor da cultura hip hop. Não temos bares ou boates que tocam rap, não temos festivais com mais frequência. Pensar em viver de arte aqui seria pensar na existência de um comércio ao redor de nossas produções, porque depender só das ocupações de espaços em instituições e editais não gera uma frequência para se manter”
Má Dame
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Travesti produzindo

“Levando a vida no fio da navalha”, como afirma em verso da faixa-título do primeiro EP, Má Dame reconhece, ao mesmo tempo, cenários de melhora e de desafios que se mantém no panorama cultural de Fortaleza.

“Ultimamente, tenho conseguido desenrolar melhor meu corre dentro da cidade, mas também dialogo muito com pessoas que tem correrias próximas à minha sobre o quanto é difícil para pessoas como eu se manterem num círculo artístico que é precarizado”, reflete a rapper.

Ela avança: “A mesma luta que passo para conseguir um palco, outros também passam, porque é sobre a aceitação do que a gente produz, mas aí tem todas as camadas de estigma que carrego enquanto uma travesti fazendo um rap que é chamado de ‘underground’”.

“Isso vai por eu ser uma travesti produzindo, direcionando show, produção, equipes. Quando você fala de uma pessoa como eu numa posição de contratação, de dar orientações, é difícil para as outras pessoas conseguirem ouvir e colocar em prática”, avalia.

A despeito das incompreensões, Má Dame segue no caminho: “A meta é voltar pra casa / A meta é ganhar o mundo”, como compartilha em “Estado Mental Fortal”. A faixa é o primeiro single da mixtape “Codinome Rosatômica”, próximo lançamento da rapper.

“Estou produzindo com o DJ Nego Célio e a gente pega muita referência do West Coast californiano, o que dialoga com a cultura do boom bap (vertente do hip hop) de Fortaleza. A geografia fala muito da cultura dos bairros e a trilha sonora das minhas áreas é marola, Bezerra da Silva, reggae”, relaciona.

Estão previstas nove faixas para a obra, e algumas delas já compõem o atual formato de show da artista, que será apresentado no Dragão do Mar no próximo dia 13. “É o meu primeiro show mais completo, vou fazer bem o que eu roteirizo para a mixtape”, adianta.

As bases das músicas já estão prontas, o que possibilita a apresentação ao vivo de faixas inéditas, mas o processo de captação, mixagem e masterização será possível somente com a aprovação em um edital a partir do qual terá os recursos para o processo.

A etapa de concretização deve ocorrer a partir de agosto e a pretensão é lançar a mixtape até novembro. “Ela dialoga muito com as composições do EP, que são o que eu já falo sobre a cidade. Tanto nas poesias recitadas quanto nas letras, até hoje ainda levo o sarau para dentro do meu show”, atesta.