Talento cearense reconhecido. Na última segunda-feira (31), o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) – um dos mais respeitados do ramo – agraciou três produções de nosso Estado. Em Fotografia, venceu a mostra “Terra em Transe”; em Cinema, o longa “Cabeça de Nêgo” levou como Melhor Filme; e na categoria Artista do Ano em Música Popular, ficou o rapper Don L, pelo disco “Roteiro pra Aïnouz, Vol 2”.
Ao Verso, este último não esconde a empolgação com a honraria. “Me surpreendi positivamente. Tô há muito tempo na caminhada e, apesar de ser um cara influente na cena, sempre me acostumei a ser um pouco excluído dos festivais, dos prêmios. Então, estar aparecendo agora nas premiações sempre me surpreende. E é importante, a gente tem uma estrada de quase 15 anos. É muito bem-vindo”, vibra Don L.
Residente em São Paulo, o rapper – nascido Gabriel Linhares da Rocha – iniciou a carreira no Movimento Cultura de Rua, em Fortaleza. De lá para cá, formou em parceria o grupo Costa a Costa, influente no cenário hip hop da Capital nos anos 2000; participou de vários eventos e gravou, dentre outras, a mixtape “Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa”, considerada um clássico do rap brasileiro.
“Roteiro pra Aïnouz, Vol 2” é o segundo disco de uma trilogia reversa, na qual o artista fala da própria história, marcada por êxodos e por uma busca pessoal. “Eu passo a fazer um exercício imaginativo de um mundo novo, de um Brasil novo, que tem a ver com essa busca. É o instante em que você percebe que a busca pessoal que você faz é a construção de um novo lugar, e não para achar um lugar”, detalha.
Envolvido por essa “utopia revolucionária”, Don L propõe que todos saiamos do aprisionamento imaginativo a partir da escuta do disco. Para ele, temos nos contentado, proposto e sonhado com bem pouco. O novo trabalho chega para estimular a luta por mudanças necessárias. “É isso ou o fim, a barbárie, como a gente está vendo”.
Segundo ele, dentre as características que fizeram de “Roteiro pra Aïnouz, Vol 2” um álbum tão reverenciado, está a maior quantidade de pessoas atuando junto ao rapper na produção e o fato de o disco cumprir uma meta pessoal de Don L: sempre fazer com que o último projeto lançado seja o melhor da carreira.
De certo modo, o objetivo é uma das maneiras possíveis de bradar o quanto a cultura e a arte importam no País. “A gente vive meio que numa distopia no Brasil a partir do capitalismo neo-liberal, no qual os artistas dependem de empresas que nem lidam com arte para continuar trabalhando. Isso é muito louco. Quando pensamos em um novo país, em um novo mundo, a cultura tem que estar em tudo. Eu, inclusive, penso em revolução brasileira, num outro modelo de sociedade realmente mudando pela raiz”, aposta.
Frutíferas inquietações
O teor de transformação também acompanha Déo Cardoso, diretor e roteirista de “Cabeça de Nêgo”. Lançado no ano passado, o filme – primeiro longa-metragem do realizador – levanta discussões sobre o racismo e a precariedade do sistema educacional brasileiro por meio da história de Saulo (Lucas Limeira), o qual, expulso da escola, recusa-se a sair das dependências da instituição.
De acordo com Déo, o trabalho nasceu de modo bastante orgânico, fruto das inquietações do cineasta ao lidar com o ambiente da sala de aula e do convívio com jovens da periferia de Fortaleza. “O filme surge daí, vira um roteiro e é enviado para dois editais. Em um, não tem sucesso; no outro, fica em primeiro lugar. Com o impeachment da antiga presidente, achei que tinha ido pelo ralo. Mas, não. Ela tinha assinado os compromissos, a grana caiu e a gente fez o filme”, conta.
Sucesso de público e crítica em vários festivais de cinema – incluindo o de Tiradentes, Cine Ceará e o Internacional de Curitiba – o longa desperta a atenção, conforme Déo, pela essência que carrega, mergulhando nos meandros do racismo, da educação e do despertar político da juventude. “A maior preocupação era que ele fosse um filme sincero”, sublinha.
“É um trabalho bem realista, com nossas coisas engraçadas e sérias. Desde o começo, eu queria que fosse um filme de impacto, que não fosse algo que tratasse o tema de forma fria, mas de maneira bem calorosa, como foi. Porque essas são as nossas relações”.
No fim das contas, o reconhecimento concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte é também um prêmio para o cinema cearense, descrito por Déo Cardoso como um pulsante, forte e diverso. Na visão do realizador, o Estado colhe os frutos dos investimentos públicos em formação de plateia e de profissionais.
“Falou em cinema cearense, a gente lembra logo de vários ícones – Halder Gomes, Janaína Marques, Armando Praça, Alan Deberton, Leon Reis, enfim, muita gente bacana. E que bom que seja assim”.
Tendo dirigido seis filmes – cinco curtas-metragens e, agora, o longa “Cabeça de Nêgo” – Déo no momento trabalha no segundo longa-metragem, por enquanto ainda surpresa. A divulgação do trabalho, contudo, deve acontecer neste ano.
Registros do Brasil
Igualmente laureada com o Prêmio APCA, a exposição “Terra em Transe" faz parte da I Edição do Fotofestival Solar, atualizada neste ano para tratar de assuntos como a pandemia de Covid-19 e o impacto dela na vida dos brasileiros.
A mostra esteve em cartaz no ano passado no Museu Afro Brasil (SP), em uma realização da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará e do Fotofestival Solar. Com curadoria do escritor Diógenes Moura, 60 fotógrafos e cerca de 600 imagens imergem o público em um universo de referências e panoramas de um País múltiplo e hipnotizante.
Entre os 60 autores que integram a mostra, estão os cearenses Fernando Jorge, Morfeu Gilson, Nicolas Gondim e o já naturalizado Celso Oliveira.
"A vida nunca mais será a mesma"
Nascida em São Paulo, mas crescida em Fortaleza e com passagem pelo Diário do Nordeste, a jornalista e pesquisadora Adriana Negreiros também foi agraciada com o reconhecimento concedido pela APCA. Ela venceu na categoria "Ensaio" com o livro "A vida nunca mais será a mesma: Cultura da violência e estupro no Brasil", publicado pela editora Objetiva.
Em recente entrevista ao Verso, a autora esmiuçou todo o processo de composição da obra, sublinhando que a compreensão dela sobre o assunto tornou-se muito maior após a produção do livro.
"Em relação às memórias, elas também eram desorganizadas. Ao remexer nos arquivos, processos, anotações e, principalmente, lembranças, consegui dar alguma ordem à experiência, por assim dizer. Antes do livro, quase ninguém do meu entorno sabia que eu havia vivido uma violência sexual — agora, isso não é segredo para mais ninguém”, contou Adriana.
Além disso, ao narrar a própria história íntima, Negreiros procurou traçar um quadro mais amplo e coletivo, valendo-se também de uma metodologia dos estudos feministas, nos quais as experiências pessoais têm grande relevância. "A racionalidade não dá conta de tudo — há circunstâncias em que o processo de conhecimento dá-se pelas emoções. A descrição da dor, do horror e do espanto é uma delas".