O ano de 2023 foi muito especial para o povo Tremembé da Barra do Mundaú. Assim define Mateus Tremembé, pesquisador e produtor cultural indígena do território, ao ressaltar a importância da demarcação das terras de seu povo, ocorrida em abril deste ano, após 20 anos de luta.
Mas a homologação não foi o único marco relevante para a salvaguarda da cultura do povo originário. Também neste ano, foi lançado o álbum “Torém – Tremembé da Barra do Mundaú”, uma coletânea de 14 canções tradicionais da comunidade, já disponível nas principais plataformas digitais.
O Torém é um ritual sagrado e uma das principais manifestações culturais do povo Tremembé. Ele ocorre tanto em ocasiões de celebração quanto em situações de guerrilha, e é caracterizado por um grande círculo, formado por pessoas de ambos os sexos, onde ocorrem danças e cantos tradicionais.
Apesar de algumas músicas autorais do povo Tremembé já terem sido gravadas anteriormente, esta foi a primeira vez em que um álbum inteiro foi elaborado, com curadoria feita pelas lideranças, equipamentos técnicos profissionais e registro em cartório.
A ideia de produzir a coletânea surgiu quando o multiartista Orlângelo Leal foi convidado para uma edição da Festa do Murici e do Batiputá, festejo tradicional do povo Tremembé que ocorre anualmente no mês de janeiro. Lá, se encantou com as músicas do Torém e seus significados e pediu autorização às lideranças para gravar algumas canções.
Pouco depois, o lançamento do Edital das Artes da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) possibilitou a formalização de um projeto para gravar as canções, em uma ilha digital no território da Barra do Mundaú – exigência dos mais velhos, para que o caráter ritualístico dos cantos seja preservado. O disco tem produção executiva de Mateus Tremembé e produção musical de Orlângelo e Caio Castelo.
Segundo Mateus, a gravação profissional das músicas de Torém é um sonho antigo dos grupos artísticos da região, por ser uma forma de preservar e facilitar o acesso às músicas dentro e fora da comunidade. “Visamos a divulgação e o registro das músicas de encantaria que precisavam chegar mais longe”, explica.
O processo contou com a realização de audições e selecionou, entre cerca de 60 canções, 13 composições feitas pelos grupos Escola Indígena Brolhos da Terra, Defensoras da Mãe Terra, Protegidas dos Orixás e Parente Torém, além do líder indígena Zé Canã.
O álbum também conta com a Oração do Povo Tremembé, que, assim como é recitada no início de cada festa ou ritual na Barra do Mundaú, dá início à coletânea. A escolha é um recado: nos lembra que, ao dar clicar no play, estamos adentrando num território especial e único, de saudação aos encantados, exaltação da natureza e celebração da cultura originária cearense.
Encontro de gerações
Compostas em suas maioria por mulheres, mas também por crianças e compositores mais velhos, como Zé Canã, as canções de Torém visam representar o território da Barra do Mundaú em sua completude.
“O álbum fala da luta, da ligação com a natureza, das águas do mar, da espiritualidade. São composições que saúdam a rainha das águas, aos animais. Representa um encontro de gerações”, completa Mateus Tremembé.
A luta pela demarcação, uma demanda pela qual muitos moradores atuais do território Tremembé ansiavam desde a infância, também está presente no álbum. Numa coincidência feliz, o lançamento do álbum ocorreu na Festa da Farinhada, logo após a homologação das terras, evento que reuniu dezenas de indígenas Tremembé.
Para o futuro, Mateus conta que há a vontade de realizar mais gravações e lançamentos, mas que as músicas já lançadas em plataformas como Spotify e Deezer devem promover uma mudança importante, para além da salvaguarda da cultura das cerca de 150 famílias que ocupam o território Tremembé.
“É a possibilidade de as nossas músicas alcançarem públicos que muitas vezes não conhecem os Tremembé de Itapipoca, Acaraú e Itarema. A partir dessas músicas e do nosso Instagram, temos parceiros lá no Canadá que nos ouvem, por exemplo. E podemos alcançar a juventude, porque tudo está na palma da mão, no celular”, destaca.
Música indígena contemporânea
Apesar das canções do álbum serem, em sua maioria, músicas sem instrumentos melódicos, que têm como base a maraca, o atabaque e o pandeiro, a última faixa de Torém, "Avoa meu passarinho" se destaca pelo arranjo moderno e o som da guitarra.
Se trata de uma intervenção sonora feita por Orlângelo e Caio Castelo em uma canção composta por Zé Canã, que reforça que a produção musical Tremembé, para além de tradição, é uma produção contemporânea valorosa.
"É música cearense contemporânea produzida dentro de comunidades do interior. A diferença é que essas canções são feitas em uma realidade onde todos estão comprometidos com uma grande causa: a garantia do território, das suas vidas, do seu trabalho, da sua história", afirma Orlângelo.
Para ele, o projeto também possibilitou empoderamento e autoestima artística para o povo Tremembé, que desde o lançamento do álbum tem participado de eventos e intercâmbios culturais.
Nas quatro comunidades do povo Tremembé, inclusive, o álbum se escuta a todo o tempo, conta Mateus Tremembé. Seja no dia a dia ou em festejos, as canções do Torém ecoam – agora, para muito além do território, e com a garantia do "para sempre".
Serviço
Álbum “Torém Tremembé da Barra do Mundaú”
Com canções dos grupos Escola Indígena Brolhos da Terra, Defensoras da Mãe Terra, Protegidas dos Orixás, Zé Canã e Parente Torém
Para ouvir: Nas plataformas de streaming ou no YouTube
Para ver: Live de lançamento do álbum
Para acompanhar no Instagram: @tremembe_da_barra_