Cleomar Ribeiro da Rocha, 44 anos, presidente do Quilombo do Cumbe, extrai o sustento da terra e do mangue. Sinônimo de resistência, manifesta na cor da pele e no semblante o orgulho pela conquista feminina na política
ansiedade não deixou Cleomar Ribeiro da Rocha dormir na noite anterior à nossa chegada. Quando levantou cedinho e se deu conta de que as galinhas haviam comido toda a alface do quintal, engoliu o choro. Esse era um dos primeiros lugares que ela queria nos mostrar, antes do mangue, um ponto de encontro diário com sua ancestralidade.
“Eu lembro das famílias, da minha mãe, da minha vó, o cuidado que elas tinham com os quintais, o aconchego. Então, isso traz na minha memória as práticas delas, da minha comunidade em si”, contextualiza, enquanto nos serve água de coco fresquinha.
Seu feijão não vem das prateleiras, tampouco os legumes e as frutas. E essa relação com a terra se expandiu ainda mais desde que despertou para sua identidade quilombola. Lembra que, ainda na infância, visitava a maior duna do Cumbe, em Aracati, e ouvia dos mais velhos que ali havia sido refúgio dos negros e que eles faziam vigília naquele morro. “Lá, avistavam o mar, todo o rio, todo o território. E eu cresci com aquilo”, pontua hoje, aos 44 anos.
Cleomar nasceu, casou, foi mãe e avó nesse mesmo lugar. Ainda pequena, acompanhava o pai, João Ribeiro da Rocha, 72 anos, nas atividades de um dos nove engenhos que funcionavam na região. “Meu pai perdeu o pai dele muito cedo, era criança de colo, passou muita necessidade. Foi criado nas cozinhas dessas famílias, que tinham as posses das terras e, às vezes, trocava trabalho pelo alimento, tomando de conta das casas nos sítios o dia inteiro”, recorda a filha.
Os engenhos, citados por seu João, são evidências históricas, encontradas também nos primeiros registros documentais do quilombo. Nos manuscritos do botânico Freire Alemão, de 1859, publicados nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1961, pág. 273), o chefe da Expedição Científica de Exploração da Província do Ceará, em visita ao Cumbe, onde ficou hospedado, já menciona a presença de “mulatinhos” realizando o trabalho com a cana. Freire Alemão escreve ainda sobre uma duna/morro, de onde se ouvem “batidas de tambores”, uma possível referência à prática do Candomblé.
Todos esses indícios auxiliaram a comunidade no processo de certificação pela Fundação Cultural Palmares, consolidado em 2014. “E é essa a busca intensa que eu tenho, de saber cada vez mais sobre essa identidade. Hoje ela me pertence tanto. A gente se orgulha de vir de pessoas que lutaram, que resistiram de formas tão cruéis de opressão e que elas viveram. A gente carrega no sangue esse povo que tanto lutou, e acho que é por isso que nós temos essa vontade de lutar, de buscar nossos direitos”, acredita Cleomar, presidente da Associação Quilombola do Cumbe, em seu terceiro mandato.
"A gente carrega no sangue esse povo que tanto lutou, e acho que é por isso que nós temos essa vontade de lutar, de buscar nossos direitos”, diz Cleomar.
Atualidade
Com a abolição dos escravos, os desafios hoje são outros. Cercados por aerogeradores desde 2008, e por fazendas de criação de camarão em cativeiro desde os anos 1990, os quilombolas agora precisam pedir licença para acessar um território que lhes serve de casa e sustento há mais de 300 anos. “Perdemos o nosso direito de ir e vir, a nossa identidade, os nossos espaços, as nossas práticas”, relembra Cleomar.
“No fim do trabalho de demarcação do nosso território, feito pelo Incra no ano passado, houve muito conflito interno, porque pessoas daqui, que trabalham para essas empresas, não aceitavam, e a gente não queria brigar com elas”, complementa. O consenso a que as lideranças do Cumbe chegaram foi o de não incluir o povoado na demarcação do Incra, visto que nem todos os moradores se autorreconheceram como quilombolas.
“A gente resistiu muito, mas negociamos, e agora estamos aí esperando para ver como vai ser o procedimento. Mas desistir nunca da nossa luta, da nossa existência, da nossa afirmação como negra, quilombola, pescadora. Isso é muito forte em nós, nós podemos gritar, porque é nossa vida”, reforça.
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Estar na presidência da associação não é tarefa fácil, tampouco segura. Quem lhe antecedeu, João do Cumbe, primeiro a alertar a comunidade para essa herança histórica, conta já ter sofrido até ameaças de morte. Mas esses percalços não intimidam Cleomar, que considera o atual posto uma conquista política feminina.
“Antes, eu lembro que eu era do lar. Hoje, eu tenho vários espaços, participo de seminários, de algumas rodas de conversa. A gente está construindo algo, compartilhando... Há todas essas trocas, de estar falando um pouco dessa participação da mulher, que tem um papel muito importante e que não é visto”, aponta.
Em casa, todos apoiam essa escolha, inclusive o marido, Wilton da Costa Oliveira, para o qual “a outra família dela é a luta”. E diz isso com muito respeito à trajetória da esposa. Na Associação, conta com os aplausos de inúmeras mulheres, a exemplo de Edite, mãe de João do Cumbe, Ana Paula, companheira de diretoria, e Edna, natural de Aracati, mas cujos avós nasceram na comunidade, e que afirma ter sido salva pelas mulheres do mangue.
Conciliação
É necessária toda essa força para a presidente não sucumbir diante dos preconceitos, como o de ser julgada pelo fato de o filho não ir bem na escola, ou de ser tratada com indiferença nas negociações de projetos para a comunidade somente pelo fato de ser mãe, mulher.
“Por mais que meu filho não esteja bem numa matéria, mas quero que ele tenha uma visão de mundo, de uma mãe que não é oprimida dentro de uma casa, num fogão, mas que tem uma dimensão maior. Minha vida é essa luta, essa resistência, é esse compromisso que a gente tem com a nossa comunidade, com o nosso território, com os nossos direitos. E eu não posso me calar diante disso”, afirma.
Cleomar quebra igualmente correntes diárias quando acorda muito cedo para pescar búzios, sururus, ostras. É principalmente do Rio Jaguaribe que ela tira o alimento e o material para o artesanato de brincos, pulseiras, colares; tudo é fonte de renda complementar, e é por isso que entende aquele lugar como sagrado, não se conformando com o acesso limitado pela carcinicultura.
“O papel da mulher é esse, e eu acho que ela tira isso da própria vivência, da sua casa, e o território não deixa de ser seu lar. A mesma defesa que ela faz com a sua família, com a sua casa, faz com o seu território e isso é o que nos impulsiona a tomar frente. Onde o homem às vezes só reclama, a mulher tem essa atitude de buscar, de questionar”, explica, sobre a participação feminina, inegavelmente mais expressiva na comunidade.
"A mesma defesa que ela faz com a sua família, com a sua casa, faz com o seu território e isso é o que nos impulsiona a tomar frente", Cleomar.
Sendo assim, Cleomar não poderia ter outro desejo que não o direito ao próprio lugar. “A gente queria, se fosse possível, o mais rápido ter a nossa terra. Eu ter direito de plantar, de ter meu espaço de pesca. Eu quero algo aqui dentro do meu território, que eu possa me sentir bem, trazer essa sensação de bem viver, de ter meu rio preservado, o manguezal. Isso é uma meta fundamental”, observa, certa de que ainda pode contar com muitas outras mulheres para alcançar esse objetivo.