“O sentido da festa e de se festejar São João nos próximos anos será mais forte”, afirma pesquisador

Com a pandemia de Covid-19, ciclo junino encara mais um ano de atividades virtuais

Pelo segundo ano consecutivo, não há balões no ar, nem xote e baião no salão. Enquanto a pandemia de Covid-19 avança, aqueles que se dedicam às quadrilhas juninas buscam alternativas para que o fogo não cesse e, quem sabe em 2022, volte a ocupar um lugar central nos festejos tradicionais do Nordeste.

É que, outrora, em um passado até recente, essa fogueira quase se apagou, mas não demorou muito para recuperar a posição de destaque. Quem lembra é o pesquisador em cultura popular tradicional e produtor cultural do Instituto de Cultura e Arte-ICA/UFC, Henrique Pereira Rocha.

“Quando iniciei minha pesquisa sobre quadrilhas juninas em 1990, encontrei em jornais de Fortaleza manchetes como: "Povo vem deixando de acordar João..." e "Festas Juninas apagam-se", com datas entre 1968 e 1971”, afirma. 

Entre as explicações expostas nas matérias, estava a ausência de motivação espontânea das comunidades na realização da festa. Porém, logo a partir de 1976, segundo Henrique, os periódicos já apresentavam outra realidade: títulos como "São João: bairros animados" e "Muita alegria na noite de São João" refletiam uma retomada das festividades e da prática de se dançar quadrilha. 

Tirando essa situação do final da década de 1960, nos últimos 30 não houve interrupção da festa, nem quando estivemos em momentos mais críticos de seca nos meados da década de 1990. Os anos de 2020 e 2021 entrarão para a história do movimento junino como anos de interrupção dos festejos”, assinala o pesquisador.

O professor e historiador do patrimônio Aterlane Martins recorda ainda um período anterior, nas ocasiões de pandemias, como o cólera e a varíola, vividas aqui no século passado. “As festividades populares foram suspensas, visto que a comoção social e as condições sanitárias se alteraram abruptamente, fugindo ao controle e suspendendo as rotinas comuns”, conta.

Mas, a tirar pela grande proporção, inclusive midiática, que os festejos juninos ganharam nos últimos anos, renascer das cinzas é possível. Aliás, é tentando nem chegar a elas que as quadrilhas de hoje buscam ambientar-se no mundo digital.

Como é comum às artes, sobretudo nesse estrato da cultura tradicional popular, o potencial de reinvenção foi imediatamente ativado, e sim, tivemos São João neste período pandêmico, virtual, remoto - do modo possível e seguro à manutenção da vida”, pontua Aterlane.

Impactos culturais e econômicos

É inevitável, porém, pensar que o digital jamais vai proporcionar a mesma sensação que o ciclo junino presencial oferece. Perde-se em termos de socialização, confraternização e práticas culturais. “As festas juninas movimentam todo o estado na sua base comunitária, assim percebe-se que o dano foi amplo e profundo”, evidencia o historiador do patrimônio.

Economicamente, também é uma cadeia produtiva que deixa de funcionar em plenitude. Costureiras, chapeleiros, sapateiros, maquiadores, figurinistas, aderecistas, entre outros, sofrem com a paralisação dos ofícios e, consequentemente, com a perda de ganhos e a manutenção econômica de si e das famílias. 

O advento da política de editais de fomento para o movimento junino, como explica Henrique Rocha, é recente, diante da longevidade que os festejos e as quadrilhas juninas possuem. Segundo ele, apesar das dificuldades, os grupos sempre conseguiram manter suas atividades na medida dos seus recursos financeiros. 

“No ano de 2020 já aconteceram diversos eventos juninos on-line mesmo com o quadro de incertezas. Neste ano de 2021, por incrível que possa parecer, estamos numa situação pandêmica pior do que ano passado. Mas os grupos e organizadores de festejos já tem certeza que não haverá eventos presenciais e já procuram se organizar para as programações via internet. O que todos aguardam é saber dos poderes públicos, municipais e estadual, se haverá apoio para essas programações”, identifica o pesquisador.

Tendências pós-pandemia

A verdade é que a experiência remota está servindo a uma reflexão maior sobre o modo de fazer o ciclo junino, como aponta Aterlane. Segundo ele, brincantes, gestores e jurados de quadrilhas têm se reunido virtualmente para juntos aprenderem e pensarem sobre si e os trabalhos apresentados, fazendo a crítica que antes era impossibilitada pelo ritmo frenético de ensaios, apresentações e festivais. 

Essa pausa permite uma reorganização a partir de um olhar mais detalhado, uma revisão do que se fez nesses anos recentes. Por exemplo, o aspecto de acirrada competição está entrando em pauta e sendo bastante criticado por diversos agentes do movimento junino, daí se pergunta, como ficarão?”, provoca.

Henrique Rocha acredita que alguns elementos da vivência de quem é brincante de quadrilha junina não vão mudar, tais como a dura rotina de ensaios, os eventos de arrecadação de dinheiro, a interação via redes sociais e o deslocamento para festivais.

O sentido da festa e de se festejar São João nos próximos anos será mais forte, e guardará a memória dos entes queridos que se foram durante essa pandemia”, aposta.

Para o pesquisador, seguramente, 2022 será um ano marcado com a temática Covid e a reflexão sobre as consequências da pandemia para a população. “As quadrilhas juninas nunca deixaram de fazer críticas sociais e políticas em suas apresentações, então o sofrimento com as perdas de vidas humanas e o fracasso do governo federal na condução da pandemia certamente farão parte de muitas temáticas”, defende.

Aterlane concorda, e acrescenta que o modo de fazer no aspecto estético, seja no campo musical, coreográfico, teatral ou visual será outra vez afetado pela tecnologia. “Afinal, a pandemia nos empurra para o uso, a descoberta, o aproveitamento de diversos artefatos ‘novos’, e é padrão das quadrilhas juninas buscar o novo, experimentá-lo e se for válido incorporá-lo à tradição do fazer junino”.

Outro “profecia” do historiador é que as várias experiências de aproximação com grupos e realidades distintas da nossa (Ceará e Nordeste) fará com que a estrutura da festa seja contaminada, no melhor sentido da palavra, pela diversidade cultural que compõe o São João do Brasil.

Os espetáculos juninos, em sua forma e conteúdo, não serão exatamente os mesmos depois dessa experiência pandêmica”, finaliza Aterlane.