Mais um ano sem marchar nas ruas, sem manifestações, sem glitter na avenida ou trio elétrico enfeitando a Parada Pela Diversidade nas ruas do Ceará e Brasil afora. Mais do que isso: pelo segundo ano consecutivo, o Dia do Orgulho LGBTQIA+, celebrado nesta segunda-feira (28), é de reinvenção em tempos pandêmicos e vem carregado com histórias de resiliência.
Se a pandemia veio para expor as fragilidades de uma população historicamente marginalizada e escancarar a dificuldade de sobrevivência e acesso a políticas públicas, travestis, pessoas transsexuais, gays e pessoas não-binárias sabem bem disso.
Da travesti que fez da sala de casa os seus palcos, em época de restrições de shows presenciais, à artista visual e historiadora trans, que, com o namorado, teve de se reinventar e correr atrás de novas fontes de renda. É preciso malabarismo para ser LGBTQIA+ em época de crise sanitária, econômica e social.
Arte como transformação
A artista visual Sy Gomes Barbosa, 21 anos, viu a rotina se transformar no último ano. Formada no curso de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), ela teve de se afastar da realidade da educação e desistir da sala de aula para conseguir ganhar dinheiro.
Focada em desenvolver pesquisa em arte e realizar performances, criar outdoors e dar cursos na área, a cearense conseguiu se virar na pandemia e se mudar para a Capital, saindo da casa onde cresceu, no Eusébio (Região Metropolitana de Fortaleza).
Ela compartilha que, mesmo com a precariedade de verbas e dificuldades impostas pelo fato de ser uma pessoa trans, ter a excelência de seus trabalhos reconhecida por meio de editais públicos foi o mais gratificante.
Vivi muitas experiências distintas. Acredito que o principal problema é esses editais aprovarem pessoas trans e não tratarem elas, ou as obras delas, com dignidade e entendimento sobre o processo de cada uma. Esses processos muitas vezes são mais árduos, sim, do que o de muitas pessoas cisgênero
A artista relembra ter enfrentado problemas para ser tratada pelo nome social, quando ainda não havia retificado os documentos de identificação, durante o Edital de Cidadania Cultural e Diversidade, possibilitado pela Lei Aldir Blanc. O auxílio foi criado na pandemia para financiar projetos culturais e artísticos.
Ainda com os impasses, o edital possibilitou que, em dezembro de 2020, Sy Gomes espalhasse cinco outdoors em Fortaleza, questionando a memória travesti no Ceará e levantando debate sobre a taxa crescente de mortes de pessoas trans no Estado
Em nota, a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) do Governo do Ceará, pontua que tem realizado ações de acolhimento à população LGBT no sentido de combater a LGBTfobia institucional, a transfobia e outras violações de direitos desta população.
No ano passado, a pasta aponta que capacitou 1.394 pessoas em iniciativas do tipo: “A Secretaria também promoveu um seminário de inserção de pessoas trans no mercado formal de trabalho, e vem desenvolvendo um trabalho de sensibilização das empresas para a contratação de pessoas trans. Além disso, a SPS oferece apoio e acompanhamento jurídico às pessoas trans no processo de retificação do registro civil, com o projeto RetificaTrans”.
Mercado de trabalho excludente
Sy comenta que participou de uma seleção para um curso de reforço escolar e relembra que passou na entrevista, mas foi retirada da disputa pelo cargo após os recrutadores perceberem que ela era uma pessoa trans, “com uma olhada no Instagram”. “É assim a nossa vida”, lamenta a artista.
As preocupações de Sy são corroboradas por Andrea Rossati, presidente da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac). Questionada sobre o cenário do mercado de trabalho para pessoas trans no Ceará, ela retruca com uma provocação: "Que mercado de trabalho é esse e que oportunidades são essas?".
O cerne do problema, na avaliação de Andrea, está no acesso de pessoas trans a educação de qualidade.
"Em primeiro lugar, já é difícil para essa população ter direito a uma educação sem preconceito e sem discriminação, o que é muito difícil para pessoas como nós. Sem essa formação básica, como que essas meninas vão chegar em um mercado que praticamente não existe?", pondera Rossati.
Para Andrea, a chegada da pandemia tornou as oportunidades ainda mais escassas para travestis e transexuais.
Com o desemprego assolando o País, é lógico que essas oportunidades reduziram, principalmente para segmentos vulnerabilizados com a população de travestis e transexuais.
Empreender para sobreviver
Todos estes caminhos levaram Sy a um caminho inesperado. Com o namorado Rodrigo Alencar, ela abriu a Larica Confeitaria e adicionou o empreendedorismo ao rol de profissões.
Para a cearense, nascida e criada no distrito de Coaçu, no Eusébio, a busca por novas formas de sustento é também reflexo de um mercado de trabalho transfóbico e limitador para pessoas trans.
“Hoje me vejo muito feliz fazendo bolos, cookies, brownies, tortas, kits, ovos de páscoa e muito mais, receitas do meu amor e companheiro maior Rodrigo Alencar. E é isso mesmo, o corre é muito grande, pois é sobre coordenar as redes sociais, as campanhas e artes de divulgação, atender clientes, comprar materiais, precificação das coisas, venda, entrega e ainda todo o dia a dia de duas pessoas trans neste mundo”, compartilha.
“Ela faz tudo”
Angel History, 24, é cantora, compositora, produtora musical, maquiadora e criadora de conteúdo digital. A travesti moradora da Barra do Ceará, em Fortaleza, já avisa nas redes sociais: “Ela faz tudo”. Mesmo com múltiplas facetas, a artista conta que tem sido difícil conseguir trabalhos na pandemia.
Acostumada a vender suas ideias e apresentações para centros culturais, Angel teve de se adequar a um modelo que virou realidade para milhares de artistas na pandemia: as lives. Seja por conta própria para viabilizar a divulgação de seu trabalho ou se apresentando em perfis de entidades culturais por meio de editais, a casa da cearense se transformou em palco.
CONFIRA O TRABALHO DE ANGEL:
O meio de sobrevivência principal de Angel têm sido os auxílios, como, por exemplo, o da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult), concedido em duas parcelas de R$ 500 para profissionais do setor de eventos. Entretanto, a cantora ressalta que faltam políticas públicas pensadas especificamente para pessoas trans.
Faltam programas que visem as pessoas trans, né? A gente teve um auxílio emergencial, para todos os artistas, mas não tivemos nada pensado especificamente para pessoas trans. É muito complicado porque temos um mercado de trabalho muito transfóbico. As possibilidades de home office para a gente quase não existiram
Conforme Dediane Souza, titular da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura de Fortaleza, a gestão municipal tem buscado estratégias para incluir a população LGBTQIA+ em políticas públicas existentes.
Ela reconhece a escassez de ações específicas voltadas para este público, mas destaca ações como o credenciamento de artistas da Capital e a busca ativa de travestis e transexuais para incluí-las no Cadastro Único para receber auxílios, como a entrega de cestas básicas.
“Precisamos ir construindo estratégias de acessar pessoas que a gente não está conseguindo alcançar. São pessoas LGBTs que não estão no convívio cotidiano da cidade e acaba ficando marginalizadas. A gente faz essa busca ativa porque existe uma invisibilidade de alguns”, declara Dediane.
Acesso a políticas públicas
Angel questiona a acessibilidade dos editais públicos que contemplam pessoas LGBTQIA+ no Ceará. Segundo ela, os requisitos de alguns documentos “são extremamente técnicos e difíceis de entender”.
“Não me sinto contemplada com alguns editais. Eu tenho nível superior completo, tenho instrução e muitas vezes acho algumas exigências muito inviáveis e não consigo entender. Imagina quem não tem? Além disso, tem prazos absurdos para ganhar um dinheiro que, sinceramente, pelo desgaste, acaba não valendo a pena”, relata.
Para Andrea Rossati, presidente da Atrac, editais públicos que permitam políticas afirmativas mais contundentes para a população de travestis e transexuais, tanto em Fortaleza quanto em todo o Estado, são escassos.
“Quando nós encontramos esses editais, eles são cheios de burocracia, né? Eles são cheios de exigências que acabam dificultando a participação de pessoas sem experiência e que não tem uma melhor estrutura e até mesmo para nós enquanto entidade”, pondera Andrea.
A SPS aponta que, em 2021, as articulações na política de diversidade sexual no Ceará estão avançando em 2021.
“Por meio da Campanha Ceará de Todxs, executada pela Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para LGBT da SPS, desenvolve capacitações e articula programas de enfrentamento a LGBTfobia. Neste ano, a SPS está trabalhando na implantação do Centro de Referência LGBT e do Conselho Estadual de Combate à Discriminação LGBT no Ceará”, diz a pasta estadual, em nota.
Avanço do conservadorismo prejudica luta LGBTQIA+
Andrea Rosseti avalia que o maior entrave na efetivação de políticas públicas já existentes para a população LGBTQIA+, "conquistadas com muita luta, muito suor, e muita lágrima", está no avanço do conservadorismo no Brasil.
Nós não estamos vendo avanços nas políticas públicas LGBT. Primeiro que nós temos um desgoverno que incita o ódio, a violência e o desamor, e isso incita a ação de pessoas preconceituosas e dificulta programas voltados para populações mais vulnerabilizados
Para Martinho Tota Filho Rocha, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador de sexualidade, gênero e direitos humanos, esse processo de desmonte vem se desenha desde 2010, quando o então Governo Federal começou, na avaliação do docente, a ceder à pressão de bancadas religiosas.
“São notórios os avanços que aconteceram no âmbito das políticas públicas voltada a essa população a partir dos anos 2000. Mas recentemente, depois de muito progresso, a entrada de líderes conservadores e religiosos no cenário politico coloca de novo o público LGBTQIA+ como bode expiatório da sociedade”, avalia o professor.
Martinho Tota comenta que esses fatores acabam marginalizando ainda mais essa população, que “já tem uma dificuldade histórica de acessar o mercado de trabalho por conta do estigma”. O docente cita que vivemos em um “momento de crise econômica e pânico moral” que acaba contribuindo para aumentar o tabu sobre sexualidade e gênero.
A Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor) afirma, em nota, que "busca promover e apoiar projetos que contemplem os artistas LGBTQIA+ da capital cearense".
"Diante da crise econômica e social gerada pela pandemia da Covid-19, em que o setor cultural foi, sem dúvidas, um dos primeiros a sofrer os efeitos, a Secultfor manteve ações de apoio aos artistas com apresentações virtuais, auxílio emergencial Uma Força Para a Cultura, pagamento do Edital das Artes e execução da Lei Aldir Blanc", diz a pasta.