No coração da Aldeota, vila privilegia pedestres e abre espaço para arte, gastronomia e convivência

Após requalificação, ruas Norvinda Pires e Sabino Pires atraem novos públicos enquanto dialogam com o passado habitacional de Fortaleza antes da expansão do centro urbano

Estreitinhas e simpáticas, duas ruas desaceleram o tempo na Aldeota. Parecem outra cidade. Formam a Vila Pita, composta por Norvinda Pires e Sabino Pires. Ambas foram recém-qualificadas pela Prefeitura de Fortaleza e agora acenam para novos públicos ao conciliar arte, cultura, gastronomia e boa convivência.

A prioridade são os pedestres. Norvinda é via exclusiva para eles, e Sabino uma via compartilhada com balizadores e piso colorido para estabelecer o tráfego calmo. A proposta é que se tornem um corredor gastronômico – semelhante ao Polo Gastronômico da Varjota.

Cafés, burguerias, sorveterias e diversidade de estabelecimentos integram o conjunto. Enquanto se alimentam, pessoas podem desfrutar tanto da modernidade dos espaços internos quanto da calmaria ao ar livre. Essa capacidade de dialogar com diferentes gostos tendo em comum a vontade de suspender a correria da rotina é destaque na fala de Giovani Garcez.

“Costumo dizer que a Vila já possui uma vocação. É naturalmente um local de encontros e de gente sensível à cultura, gastronomia e contemplação”, analisa o publicitário e galerista, um dos responsáveis pelo projeto de mudança estrutural dos endereços. No processo de requalificação, a ideia foi pavimentar o caminho para que a vila seja o que de fato é. 

“Pouca intervenção foi o suficiente. No muito, plantar árvores a fim de parar com a circulação de veículos. Liberar o ambiente para a convivência agradável – o básico, o simples”. Segundo ele, as ruas sempre foram lugar de artistas por, ao longo do tempo, abrigar ateliês, estúdios de fotografia, agências de audiovisual e arquitetura. Agora, é continuação.

“Entendo que o que não pode faltar é uma gestão. O ‘dar liberdade’ para que a Vila viva requer o mínimo de controle, seja no acesso de ambulantes ou na segurança. Evitar que ocorreu com a antiga Praia de Iracema, por exemplo”. Entusiastas não faltam para defender a causa. Estiveram juntos em cada passo da nova trajetória das ruas.

Amigos, frequentadores, empreendedores gastronômicos e vizinhos são contabilizados na equação afetiva de Giovani. Ele mesmo realizou diversas reuniões com a família Pita – proprietária dos imóveis. Sem sucesso nesse caminho, criou uma campanha de financiamento coletivo na qual 20 inquilinos pagaram R$500 cada, viabilizando a criação do projeto desenvolvido pelo arquiteto Ricardo Muratori.

Para vários paladares

O Verso visitou o espaço de modo a sentir a dimensão dessa nova fase. Além de desfrutar do clima das ruas, aproveitamos para conhecer estabelecimentos capazes de desenhar o rosto do polo gastronômico. Começamos pelo Hey Joe Food’n Bar. Nascido em 2015 como foodtruck especialista em sanduíches, pouco a pouco foi expandindo o negócio.

Outrora localizado na esquina da Avenida Virgílio Távora com a Dom Luís, passou a ocupar a Rua Norvinda Pires em 2017. À época, apostaram no charmoso logradouro exatamente pela história do lugar. Na visão dos proprietários, a Vila Pita já hospedou empreendimentos icônicos de Fortaleza, e isso daria estofo para recomeçar em grande estilo.

“A requalificação da Vila é uma batalha de um grupo de empresários da ruazinha há um bom tempo. O projeto já estava na Prefeitura há uns cinco anos. O consenso maior sempre foi de revitalizar o calçamento, que estava muito detonado”, explicam os empresários e sócios Priscylla Mesquita e Fabiano Pedon.

“No final do ano passado, pedimos apoio ao Presidente da Abrasel, Taiene Riguetto, que deu visibilidade ao potencial dessa reforma junto ao Secretário da Regional II, Renys Frota. Este abraçou a causa e nos ajudou a tirar o projeto do papel no início deste ano”. Esse clima de novidade, por sinal, perpassa a aura do Hey Joe de vários modos.

Fora as delícias do cardápio – com carta de drinks autorais e culinária apurada de entradas, sanduíches e sobremesas, incluindo opções veganas, vegetarianas e fit – existem algumas iniciativas em andamento, em especial ligadas às Artes Visuais e à Música. O ponto é movimentar os três espaços: calçada ao ar livre, térreo climatizado e terraço a céu aberto.

“Novos polos culturais e gastronômicos ajudam na ocupação da cidade e fornecem atrativos para o fortalezense e o turista. Além disso, movimentam a economia e contribuem para a segurança da região. Com a melhoria da iluminação, piso revitalizado e garantia de acessibilidade, tá ainda mais gostoso e seguro curtir a rua nesse pedaço da cidade”, vibram.

O mesmo acontece com a Janela do Armazém, cujo carro-chefe é o gelato. A primeira loja também foi na Norvinda Pires quando o projeto de urbanização ainda era sonho distante. “Mesmo antes disso, sempre achamos que o lugar tinha uma energia legal e posição geograficamente privilegiada na cidade”.

As impressões são do sócio-fundador, Ignácio Capelo – também proprietário do Armazém Capelo, operação gastronômica mais antiga e tradicional da Vila. De acordo com ele, a proposta do estabelecimento é atender pedestres, com atendimento e consumo na calçada. A implementação do espaço exclusivo para transeuntes na Vila Pita potencializou o projeto. Resultado: clientes adorando a nova vibe.

“Seria ótimo para Fortaleza que esse modelo se espalhasse por toda a cidade, privilegiando o pedestre e permitindo que todos possam usufruir de um espaço de convivência agradável e seguro para as famílias”, diz, enfatizando o cardápio do Janela: sabores inusitados de gelato combinados com boa música. Mistura imperdível.

“Nós e nossos vizinhos na Norvinda Pires lutamos muito junto à Prefeitura pela reforma. Esperamos fazer parte de algo muito maior, e que possa ser considerado mais que uma nova opção de lazer: parte do circuito turístico e cultural da Capital”.

Na calçada e com aconchego

O desejo da Rua Sabino Pires é a mesma. Por lá, entre outros cantinhos, está a nova sede do Torra Café, há pouco mais de um mês no endereço. A inauguração ocorreu praticamente junto ao fim das obras da rua, na última semana de maio. “Assim, é possível sentir um clima de entusiasmo de recomeço por toda a vila”, expressa a proprietária, Thamires Studart.

Desde que começaram a informar os clientes sobre a mudança – antes, funcionavam na Rua Marcos Macedo – perceberam grande expectativa a respeito do novo tipo de uso da rua. Logo, não podem reclamar do movimento. São muitas visitas desde a reabertura, e continuam ouvindo o comentário: a vila inteira trouxe nova cara para a região.

“Sempre flertamos com a Vila Pita. Quando houve a possibilidade, a primeira coisa que veio à mente foi a sensação de aconchego e acessibilidade que a vila traz e que nós também tentamos refletir na arquitetura interna. O fato de ter mais pedestres passeando pelo lugar, um jardim na entrada e a cafeteria no nível da rua traz mais força a essa ideia”.

O menu também ajuda, com pratos para pessoas apaixonadas por cafés e chás especiais e, claro, opções de comidinhas para acompanhar. No fim, é algo que estimula a convivência de todos. “A cidade conta uma história e é necessário preservá-la. A melhor forma de se fazer isso é dando uso aos espaços. Essa prática em si já é um grande benefício para todos”.

História da Vila Pita

Tem a ver também com memória e registro. Nesse quesito, a história da Vila Pita é contada por Manoel Falcão, advogado responsável pelo projeto Dicionário de Ruas de Fortaleza. Ele acredita que as casas e espaços hoje lá instalados foram morada na Aldeota antiga – cuja área, naquele ponto específico, foi ocupada a partir da construção do Hospital Geral Militar.

“Com o passar dos anos e a migração em massa para os prédios de apartamentos, as casinhas se transformaram em opções baratas e bem localizadas de aluguel para fins comerciais, notadamente voltados para fins gastronômicos e de entretenimento”, contextualiza o amante do rock, frequentador assíduo do “Maria Bonita”, antigo estabelecimento dali.

Características dessa ocupação urbana seguiram uma tendência natural de mercado – repetida, por exemplo, na antiga Praia de Iracema, onde os armazéns desativados deram espaço a bares icônicos, como o lendário ”Coração Materno”.

“A permanência desse tipo de uso provavelmente deve-se à impossibilidade de verticalização do local, fato que o preservou como uma espécie de reduto para a boemia e atividades voltadas para a inovação, tais como escritórios de arquitetura e serviços de tecnologia”. Ainda assim, ele reflete sobre o uso da palavra “vila” para designar o endereço.

Para isso, parte da definição do jurista José Afonso da Silva, com forte dedicação à questão urbanística. Segundo o estudioso, vila é um “conjunto de casas, geralmente iguais, dispostas ao longo de um beco com uma saída para a rua ou avenida”. Sob este prisma, as ruas em questão são ruas locais, não vilas – embora, devido às casas possuírem características e dimensões semelhantes, tenham passado a ser popularmente conhecidas como tal.

“Delas não conseguimos resgatar informações precisas e seguras sobre a origem, exceto algumas que dão conta de que Sabino e Norvinda seriam os proprietários originais das residências”. Em meio às dúvidas, uma certeza: as intervenções urbanas pelas quais as ruas passaram merecem reconhecimento.

“Elas preservam uma vocação já consolidada, potencializando o acesso à área e à dinâmica urbana de usos mistos que se complementam mutuamente. Nela, o fluxo de pessoas, mercadorias e serviços ocorre quase ininterruptamente ao longo de 24 horas, haja vista que ‘quando o escritório fecha, o bar abre’”.