Você conhece uma pessoa. Passa a se relacionar romanticamente com ela. É bom para os dois, mas não existe uma definição do que está acontecendo. De repente, ambos estão ligados por um fio muito invisível. Não se avança nem se deixa, não é "fica" nem namoro. Bem-vindo, este é o “quase algo”.
Na seara dos relacionamentos, o termo diz respeito a conexões que não foram tão maturadas ou validadas a ponto de virar realmente compromisso. Ficam num limbo, entre o que é e o que poderia ser. Quem diz é Bruna Myrla Ribeiro Freire, psicóloga e psicoterapeuta. Segundo ela, o comportamento tem sido cada vez mais comum nos relacionamentos contemporâneos.
“Isso pela dificuldade atual de engajamento nas relações amorosas. Temos uma ligação cada vez mais específica com o tempo. Rapidez, fluidez e instantaneidade estão no dia a dia e atravessam toda a nossa existência, reverberando também nas trocas românticas”. Os efeitos tanto dessa velocidade quanto da quase incapacidade de nomear algo são fortes.
Para Bruna, a nomeação de qualquer emoção ou sentimento é importante para a melhor compreensão dessa vivência. A indefinição de uma relação, portanto, pode trazer aspectos confusos em relação aos limites do que está se estabelecendo, bem como pouca clareza das pessoas envolvidas sobre as expectativas partilhadas.
E não é que expectativas sejam ruins. A ausência total delas, por sinal, é impossível, visto que estamos o tempo inteiro em contato com as pessoas, afetando e sendo afetados por elas. “Isso significa que, independentemente de nomeação, um ‘quase algo’ ainda é uma relação, e isso nos marca. Por isso a perda ou o luto podem ser, sim, muito significativos”.
Sem rótulos, mas ainda importante
Luana Machado tem opinião semelhante. Tudo que existe é algo sim, e a ausência de um rótulo não necessariamente tira a importância do que foi vivido. “Essa indefinição do relacionamento pode vir também de uma maior liberdade. Hoje não há mais tantas regras, e cada um pode se relacionar como deseja”, situa a psicoterapeuta clínica de adultos e casais.
“Quando existe uma cartilha a ser seguida, você apenas tenta se encaixar naquele modelo que esperam de você. As pessoas estão se experimentando mais. Para alguns, a ausência de um rótulo pode ser algo confortável; já para outros, pode ser um fator que traga ansiedade”.
Vai depender, claro, de como cada um lida com essas questões e quais as prioridades para uma relação. Querendo ou não, um rótulo é algo que define algo, e as definições dão um certo norte para saber em que chão se está pisando.
O tema é relevante porque considera também as próprias noções de amor a qual estamos habituados, ou não, a lidar. De acordo com Luana, as formas de se relacionar mudam conforme a cultura e a época – a noção do amor romântico não existia antes da Revolução Industrial, e as pessoas casavam apenas por questões práticas e sociais.
“Hoje já é possível observar menos imposições sobre formas de se relacionar, deixando as pessoas mais livres para decidirem como desejam viver o amor. Isso faz com que surjam novos modelos, e até não-modelos”.
Nesse sentido, as redes sociais cumprem papel interessante. Otimizam que as pessoas falem mais sobre o assunto e conferem oportunidade de gerar reflexões. Embora comecem como brincadeira – afinal, o “quase algo” gera até meme – para quem tem o hábito de estar se questionando, pode ser intrigante parar e entender o que faz sentido para cada um.
É possível amar bem hoje?
A resposta para Luana é clara: só se relaciona bem quem se conhece. “Se conhecer passa por entender quais as formas próprias de estar em uma relação – em todas elas, seja com amigos, familiares ou namoros. Embora o autoconhecimento não tenha um fim e uma linha de chegada, entender esses processos colabora para entender necessidades e dificuldades”.
Assim, somente com necessidades claras é possível ter um diálogo com o outro sobre expectativas. E se relacionar bem não quer dizer sem dificuldades. Toda relação vai exigir ajustes. Contudo, a partir de diálogo constante e demandas claras, é possível ser mais saudável na troca interpessoal.
Ao mesmo tempo, pondera Bruna Myrla, não é possível trazer definições tão fechadas sobre o amor, assim como não é possível “medir a gramatura” de um sentimento. “Penso que cada caso é um caso, isso é singular em cada relação”.
Por sua vez, há outro ponto crucial nesse panorama: a frustração. Há dificuldade em aceitá-la, claro – quem quer frustrar as próprias expectativas? Mas o caminho, aponta Luana Machado, é mesmo atravessar os sentimentos. Vivenciar a angústia e não fugir. Em suma, ao invés de procurar a superação, buscar mais passar por dentro das emoções a fim de acolhê-las.
“Buscar apoio nas redes de relações seguras, conversar com amigos que você confia para dividir as dores ou mesmo um processo terapêutico pode ajudar a ir sustentando as frustrações inerentes à experiência humana”, diz a estudiosa.
“Toda vivência pode trazer aprendizados se você souber aproveitar isso. A cada relação que você tem ou quase tem, fica mais claro quais são suas próprias necessidades. Entender o que não foi legal e o que não se gostaria de repetir. Entender o que é inegociável e sustentar essa decisão em uma relação futura”.