Música para surdos: DJ cearense usa luzes, ritmo, Libras e danças em performances inclusivas

Trabalho explora a percepção do som por meio de todo o corpo, e não somente pelos ouvidos

André Garan faz os surdos ouvir. Não, não se trata de milagre. É tudo consequência de um processo cuidadoso e imersivo, ultrapassando o entendimento básico do que seja escutar.

Acontece assim: em uma sala totalmente escura, com iluminação especial – alimentada por projeções e sons específicos, como numa boate – o DJ cearense faz uma performance na qual ativa instrumentos eletrônicos de forma a mostrar, gradativamente, a música para a comunidade surda. “Alguns, com mais de 40 anos de idade, tiveram a primeira experiência sonora comigo”, dimensiona o também filósofo e pesquisador.

Nesse movimento, entram em cena algumas danças – advindas, por exemplo, de rituais indígenas de celebração do divino. As coreografias ensinam os surdos a fazer a marcação do tempo das canções. Quando batem o pé no chão, provocam uma vibração capaz de produzir som. “Assim, mostro para eles que, mesmo sem escutar, conseguem fazer isso, criar essa vivência”, situa Garan. 

Ele criou um equipamento no qual a luminosidade do aparelho depende da batida sonora – otimizando com que os surdos possam “ver” o som. E também utiliza luvas brancas durante as sessões musicais, capazes de projetar uma luz negra.

Logo, no ambiente inteiramente escuro, só é possível visualizar as duas mãos do DJ. Isso simboliza a incorporação da Língua Brasileira de Sinais (Libras) ao trabalho. Um panorama, portanto, completo, simbólico e revolucionário.

Cada um desses procedimentos integra a dinâmica da Oficina Pulso, a primeira de caráter sonoro para surdos no Brasil idealizada por um DJ. O projeto parte do conceito de que o ser humano escuta por meio de todo o corpo, e não somente pelos ouvidos.

A constatação foi resultado de 10 anos de estudos e experimentações, tempo no qual André Garan se dedicou a compreender os mecanismos que favorecem o contato mais estreito da comunidade surda com o som. Para isso, o DJ se valeu de saberes em vários segmentos: Música, Física, Matemática, Acústica, Biologia e, claro, Libras.

Legenda: Este é sinal da letra "p", em Libras; ao término da sequência, os sinais formam a palavra "Pulso"
Foto: Kid Júnior
Legenda: Este é sinal da letra "u", em Libras; ao término da sequência, os sinais formam a palavra "Pulso"
Foto: Kid Júnior
Legenda: Este é sinal da letra "l", em Libras; ao término da sequência, os sinais formam a palavra "Pulso"
Foto: Kid Júnior
Legenda: Este é sinal da letra "s", em Libras; ao término da sequência, os sinais formam a palavra "Pulso"
Foto: Kid Júnior
Legenda: Este é sinal da letra "o", em Libras; ao término da sequência, os sinais formam a palavra "Pulso"
Foto: Kid Júnior

O evento-teste para demonstração da ampla pesquisa aconteceu em agosto de 2019, durante o primeiro encontro da Pulso. Os sentimentos daquele dia perseguem Garan até hoje. Ele se emociona ao recordar a percepção de que os surdos trocavam olhares admirados durante a sessão.

“No momento em que soltei a primeira frequência sub-grave – uma que causa vibração no ambiente, a depender do som – e vi os participantes se entreolharem como se dissessem, ‘tu percebeu isso?’, eu comemorei demais, fiquei todo arrepiado. Foi naquele instante em que percebi: a pesquisa tinha dado certo”, lembra.

Nascer acessível

Diferentemente de outras empreitadas no ramo, a Oficina Pulso não foi adaptada para ser acessível, mas efetivamente já nasceu assim. Com André, compõem a ação os tradutores e intérpretes de Libras Jorge Viana e Aljanielle Amorim

Antes da pandemia de Covid-19, o projeto realizou dois encontros: um sediado na Escola Porto Iracema das Artes, com pessoas provenientes do Instituto Cearense de Educação dos Surdos; e outro no Porto Dragão, compondo a programação oficial do II Seminário Cultura do Acesso, promovido pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE). 

Devido à pausa compulsória, as ações precisaram ser reinventadas. Logo, passaram a compor o roteiro de atividades lives e debates, tanto a respeito da iniciativa quanto sobre a realidade da comunidade surda no Brasil hoje.

“O sentimento com essa proximidade que passei a ter com eles é de ter alcançado um de meus objetivos: fazer com que a minha arte chegue ao máximo de pessoas. Quando, no início, eu comentava que queria fazer música para surdos, muita gente achou impossível. Aquilo me inspirou a provar o contrário: é possível, sim, fazer arte para todos, que ela chegue nos lugares mais improváveis. Para mim, esse lugar são os ouvidos de um surdo”.
André Garan
DJ, filósofo e pesquisador

A vontade de estar junto desse público surgiu ainda durante a graduação, na Universidade Federal do Ceará. Cursando Filosofia, André fazia algumas disciplinas de Licenciatura e uma delas era Libras. Já DJ naquela época, ele percebeu que o professor do curso, surdo, achava muito interessante a profissão dele, o que despertou a curiosidade de estabelecer conexões entre essas duas áreas.

O profissional sublinha, inclusive, que os estudos no segmento acontecem até hoje. Garan produz as próprias músicas, e são elas as utilizadas na Oficina Pulso. “Trabalho com canções autorais, e elas têm um apelo especial a certas frequências. Isso porque, na minha pesquisa de Acústica, percebi que existem algumas frequências que facilitam a vibração de materiais – chamadas frequentemente de ressonância. Assim, projetei algumas caixas de som que reproduzem bem essas frequências e eu produzo as músicas. Consequentemente, um surdo vai conseguir perceber mais facilmente o som”, detalha.

A experiência é exclusiva para os surdos? Garan faz questão de destacar que não. Caso participem de um dos encontros da Oficina Pulso, os ouvintes vão escutar música eletrônica e funk, dois dos gêneros mais explorados nas reuniões.

Inclusive, para além das canções autorais do DJ, há uma mais conhecida do grande público: “Alors on Dance”, do cantor belga Stromae. “São músicas eletrônicas dançantes que podem ser tocadas em qualquer lugar. Porém, além de serem autorais, o diferencial delas são dois: possuem frequências específicas que vão facilitar uma vibração; e não têm letras em português, mas em Libras”.

Conquistas e desafios

Sendo setembro o mês da campanha de conscientização sobre as questões da comunidade surda – referenciada no Brasil como Setembro Azul – André Garan traça um painel com os principais desafios enfrentados por essa população. Segundo ele, a acessibilidade é tratada, na maioria das ações, como um anexo ou de modo a compor uma vitrine. Ao telefone, a voz do DJ embarga ao tecer considerações sobre essa difícil realidade.

“As lutas são diárias. Eu, como ouvinte, não posso falar pelos surdos, mas consigo citar algumas situações que vejo os meus amigos passando. Uma delas é a setorização dos espaços, fazendo com que a comunidade surda fique separada dos demais. Isso não é para acontecer. Os lugares precisam ser integrados, acessíveis. Quanto mais se separa, mais se desorganiza. Está todo mundo junto no mundo, então que a gente consiga se organizar com todo mundo junto também”, defende.

Entre tantos sonhos, um antigo é a possibilidade de que o ensino de Libras seja implementado em todas as escolas como disciplina obrigatória. Isso, conforme observa, otimizaria para que os surdos não precisassem de um intérprete ou de alguém que conheça a Língua Brasileira de Sinais para resolver problemas comuns, como a ida ao banco ou ao supermercado.

“Torço para que os bancos, shoppings, teatros, casas de show, enfim, todos os estabelecimentos e lugares estejam preparados para receber as pessoas surdas. Quero ver todo mundo em todo lugar de acordo com suas escolhas e preferências”, conclama.

É promover um “desisolar” – termo criado no ato da conversa. E, assim, esticar os horizontes, sobretudo do agir em prol do bem maior. “Quando a gente fortalece essa conexão, tiramos a linha-limite e conseguimos integrar. É um sonho rodar o Brasil e mostrar não apenas o meu trabalho, mas validar que o som, a música, são possíveis para pessoas surdas. E que, até mesmo sendo possível, elas têm o direito de não querer conhecer. É tudo questão de liberdade, de dar a possibilidade para que elas se permitam”. 

Talvez, de preferência, no ritmo sincopado das canções que jogam a vida para a frente. Não um milagre: inclusão.

 

Serviço
Oficina Pulso, projeto sonoro para surdos
Mais informações no perfil do projeto, no Instagram