Após repercussão de uma fala pública durante o 3º Encontro do Sistema Estadual de Cultura na sexta-feira (26), na qual afirmou que editais trariam “100% de insatisfação” e não precisariam “garantir salário” da classe artística, a secretária da Cultura do Ceará Luisa Cela negou que as declarações foram de “ironia” e “deboche”.
Ao Verso, em entrevista por telefone na segunda-feira (29), a gestora afirmou que a fala foi retirada de contexto e fazia parte de uma “reflexão” sobre os sistemas de financiamento ao setor artístico cultural no Ceará. Conforme a titular da Secult, os editais são hoje “praticamente uma via única” de fomento e a pasta está buscando diversificá-lo, pensando em estratégias como crédito e credenciamento.
Fala foi recebida com aplausos e risadas
As declarações públicas de Luisa Cela se deram na sexta-feira (26). “Eu digo que edital é 100% de insatisfação, porque quem fica fora fica com ódio porque ficou fora. Quem fica dentro, fica com ódio porque demora pra pagar, aí depois fica com raiva do monitoramento, da prestação de contas, então é 100% de insatisfação”, disse a secretária.
Os comentários foram recebidos com risadas e aprovação da plateia, formada majoritariamente por gestores municipais de cultura. Em vídeo do momento obtido pela reportagem, uma pessoa do público chegou a dizer audivelmente “e ainda acha pouco (sic)” após a fala inicial da secretária.
A gestora tenta voltar a falar, mas é interrompida por mais aplausos e risadas mais fortes da plateia. “Assim, eu tô sendo, eu tô sendo…”, reinicia a secretária, sob aplausos do público. Ela ri e, então, segue a fala:
“Claro que eu tô fazendo uma figura de linguagem, é claro que os editais são muito importantes, tudo é muito bem realizado… Que as coisas são muito bem… É muito mais uma provocação de que a gente precisa desconstruir a nossa mente, que se condicionou a isso. Se condicionou a achar que edital precisa garantir salário de todas as pessoas da classe artística. Não!”
“Leituras dúbias e distorcidas”
Conforme a gestora, a fala foi feita em um “campo de reflexão” e um “recorte” foi retirado de contexto, podendo “provocar leituras dúbias e distorcidas”. A secretária defende que esse "mecanismo não contribui para um aprofundamento da discussão séria sobre política pública de cultura”.
“Na ocasião, nós estávamos reunidos com mais de 160 gestores municipais de cultura e não estávamos fazendo uma avaliação da política de editais, ou muito menos da execução da Lei Paulo Gustavo por parte da Secretaria da Cultura do Governo do Estado. Estávamos fazendo uma reflexão sobre o Sistema Estadual de Cultura, os Sistema Municipais de Cultura e os sistemas de financiamento ao setor artístico cultural no Brasil e no Ceará”, justifica a gestora.
Segundo a secretária, a reflexão era sobre como “qualificar o sistema de financiamento ao setor cultural do Ceará, fortalecendo com maior volume de recursos, mas também entendendo que não é só sobre maior volume de recursos, é também sobre instrumentos e modelos que consigam estar sintonizados e consigam atender a dinâmica do campo cultural”.
“Como a fala foi descontextualizada, foi recortada, ela traz um sentido muito diferente do que estava sendo discutido ali. É tanto que os gestores municipais aplaudem porque compreendem que têm um desafio de ser transformado”, diz a secretária sobre os aplausos.
Ao ser questionada sobre as risadas, Luisa entende que seriam um “riso de nervoso” pela “identificação” de situações. “A maior parte das pessoas que estavam ali são gestores e gestoras culturais que estão vivendo esse desafio, porque por mais que tenham municípios cearenses que tenham recebido valores pequenos da (Lei) Paulo Gustavo, é a primeira experiência de muitos, é a primeira vez que você tem uma descentralização”, afirma.
“Então não foi uma risada de deboche, foi uma risada, na verdade, de ‘estamos vivendo todo mundo essa mesma coisa’, quase um riso de nervoso quando você se identifica com o desafio que está colocado na pauta”, justifica.
“Desafio” para dar mais eficiência a editais
Na entrevista, Luisa Cela ainda ressaltou o desafio de "modernizar a gestão pública de cultura para que os editais possam, sim, ser mais eficientes”. Para tanto, a gestora cita investimentos em tecnologia da informação e simplificação de procedimentos dentro dos limites da legislação.
“Nós vínhamos de um cenário de pouco recurso. Para você ter uma noção, a Secretaria da Cultura executou, em 2022, R$ 40 milhões para o fomento cultural por meio de editais. Em 2023, foi um pouco mais de R$ 120 milhões, então eu mais do que triplico o valor de um ano para o outro”, contextualiza.
“Isso, para a gestão pública, é um desafio porque você tem um volume muito maior de recursos para executar no mesmo período e traz os desgastes que todo mundo, todo o campo e toda a imprensa tem acompanhado, da demora que é a tramitação de um edital até o seu pagamento”, segue.
“A gente tem um desafio, nunca neguei isso, e também jamais direi que os editais não são ferramentas importantes de fomentar o setor artístico e cultural. Não havia deboche nem havia ironia na minha fala. Havia uma reflexão, porque é importante tanto a gestão cultural como a classe artística identificarem e refletirem sobre o que não está funcionando e porque não está funcionando”
Mudanças são algo “desafiador” para a gestão pública, diz Luisa, por ela ser “muito pesada”. “A dinâmica do campo, por outro lado, é dinâmica, rápida. Artistas, agentes culturais, técnicos, produtores, precisam ter recursos todos os meses, assim como todo trabalhador e trabalhadora, para pagar as contas”, segue.
À reportagem, a secretária afirmou que o Governo segue em “processo de liberação de resultado e de pagamento dos editais” da Lei Paulo Gustavo, informando que até o final da semana os resultados das chamadas de audiovisual serão divulgados.
Acesso a crédito e credenciamento como “outros caminhos”
Ao Verso, a gestora acentuou que é necessário diversificar formas de fomento. “A partir do momento em que você estabelece para todo um setor uma via única de financiamento, essa via vai ser muito tensionada e ela não vai atender a diversificação, a diversidade do campo artístico, desde o formato até os tipos de manifestação”, defende.
Destacando que “a política de fomento e os editais são uma via importantíssima”, Luisa ressalta que, se o edital “for o único e exclusivo (caminho), realmente não vai conseguir garantir uma vida digna para todos os trabalhadores e trabalhadoras da cultura”.
“Talvez o crédito, por exemplo, seja um caminho mais interessante, talvez fazer um credenciamento”, exemplifica. Conforme a gestora, a Secult está em diálogo com o Banco do Nordeste para, por exemplo, oferta de crédito ao setor cultural.
“Tanto crédito nos moldes do Crediamigo, que é menor, com um valor menor para iniciativas menores, como também um crédito que é de uma dimensão mais técnica, um FNE (Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste), que pode atingir valores maiores”, adianta. A pasta quer “conseguir avançar para isso” ainda em 2024.
Acesso a editais ainda é reduzido
Modelos diferentes, ressalta a secretária, já existem dentro da própria Secult. Ela cita as políticas voltadas a mestres e mestras da cultura. “Apesar de ser um edital (Edital do Tesouros Vivos da Cultura), ele garante um apoio perene, o mestre da cultura não precisa ficar todo o ano participando para receber. Só que temos um desafio de escala, porque muitos mestres ainda estão fora desse tipo de apoio. Como fortalecer essas iniciativas?”, provoca Luisa.
Questionada pela reportagem sobre a parcela considerável de agentes culturais que não conseguem sequer acessar a política dos editais, a gestora citou dois caminhos de atuação da secretaria para maior inclusão.
O primeiro seria uma espécie de acesso “indireto”, quando um trabalhador é contratado por uma iniciativa que seja contemplada por um edital, gerando “dinâmica de trabalho que produz emprego, renda, riqueza”.
“Se eu sou um técnico, não preciso necessariamente, para conseguir ter acesso à política pública ou ao recurso público, acessar diretamente o edital. Posso ser contratado por um festival, espaço independente ou escola livre que foi fomentada. Isso é criar dinâmica para o setor”, defende.
O segundo seria investir na “capilaridade” junto aos municípios. Ela cita uma política estadual realizada no âmbito da LPG de “articuladores” em todas as regiões do Ceará e o recém-anunciado cofinanciamento dos sistemas municipais de cultura por parte do Governo do Estado.
“É preciso que a gente se associe aos municípios, ajude a estruturar e financiar as políticas dos municípios. Desse público que tem mais desafio de acessar, seja por ausência de internet, baixo letramento ou porque fazer um edital não é algo tão simples, o município vai estar muito próximo”, aponta.
“É claro que temos muitos desafios pela própria trajetória das políticas culturais no Brasil, mas temos uma oportunidade única nesses próximos três anos de conseguir consolidar estruturas e lógicas de fomento e de financiamento e, principalmente, a valorização política do campo cultural”, sustenta Luisa.