Lorena Portela acredita no amor. Melhor: sempre está pronta para amar. O tema, não à toa, fez morada no livro de estreia, “Primeiro eu tive que morrer” (Planeta, 2022), e agora ganha espaço já no título do segundo romance. “O Amor e Sua Fome” (Todavia, 2024) mapeia a geografia do sentimento ao apresentar verdadeira montanha-russa de olhares, sabores e desalinhos de quem se lança ao apaixonamento.
Nas páginas, esse alguém é Dora. Criada sem a mãe por um pai entregue à apatia, ela divide os dias no interior do Ceará com Esmê, prima inseparável. Inseparáveis mesmo, relação umbilical: onde uma vai, a outra segue. O que uma faz, a outra repete. Dois organismos vivos e independentes, embora cientes da necessidade da presença uma da outra.
No desenrolar da história, enquanto outros personagens se apresentam – sobretudo Jaime, cuja aparição atiça a novidade da adolescência e as descobertas desse período – acompanhamos o navegar desse rio ora manso, ora zangado. Rio que de repente é mar, tornado, furacão. E então por vezes é calmaria de novo, água corrente.
“Como a Dora é uma personagem que a gente vê crescendo, os sentimentos dela são muito conflitantes. Eles têm ondas. Vão e vêm, ora de um jeito, ora de outro. Numa hora o amor é a coisa mais linda; noutra, é esquisitíssimo. É meio como a gente vive também”, situa a escritora. “Mas ela é principalmente uma personagem que a gente vê experimentando os sentidos pela primeira vez”.
O ambiente dessa borbulha toda é Miradouro, município fictício com todas as tintas de uma autêntica paisagem interiorana. Está lá o passar das horas na calçada, os vizinhos quase família, o vento que sopra diferente. Está lá também nossa linguagem em ênfase e brilho. Embora residente em Londres, Lorena pega o cearensês pela mão e é conduzida por ele.
Levantar essa bandeira cultural do lugar onde nasceu desemboca na própria identidade. E tem o ponto do deslumbre. “É uma coisa bonitíssima, o jeito que a gente fala. Quero trazer essa beleza para o texto. E também acho importante utilizá-la porque a história ficaria muito mais verossímil se a Dora falasse como de fato falamos. Sou cearense e convivo com pessoas do Ceará até hoje. Essa fala está cravada em mim pra sempre”.
Mesma escritora, outra escritora
Explorar esses e outros assuntos será possível com o lançamento do livro nesta sexta-feira (27), às 18h, no Complexo Estação das Artes. O evento contará com mediação de Socorro Acioli, sessão de autógrafos e discotecagem promovida pelo coletivo de DJs Tome Batom Vermelho. “É o sextou delas”, gargalha Portela, distante de Fortaleza desde o carnaval.
São duas escritoras diferentes, segundo ela. A Lorena de “Primeiro eu tive que morrer” atravessou cinco anos até chegar ao novo trabalho. Mudou muito. Enfrentou pandemia, a perda do pai, trocou de país. Leu mais livros, ouviu mais músicas, viu mais filmes, conversou com mais pessoas. Continuou, porém, a viver e observar o mundo.
“É um trajeto que acompanha o decorrer do tempo. Esse segundo livro vem como um dia a dia, um ano após ano”. A boa notícia é que, diante das inevitáveis transformações, o que conquistou a audiência no primeiro romance certamente fisgará mais pessoas neste segundo. Lorena permanece habilidosa em criar cenários e personagens dotados de carisma e densidade. A leitura flui, e entrega tanto frases quanto reflexões importantes.
A espinha dorsal delas – entre dores, ausências e revoluções – é mesmo o amor. Repare: “Iria saber o que é alegria, mesmo se ninguém jamais explicasse, porque tem coisa que tem definição no dicionário, mas nem precisa de nome porque a gente vai aprendendo é nos dias e nas noites”. Ou “Todo amor é condição, menina. Se a gente não cumpre a condição, o amor vai embora. E manda a conta pra gente pagar”.
Na ótica da escritora, apaixonar-se ocupa muito espaço na vida. Se em alguns cenários o sentir vai amansando, em outros é coisa assustadora mesmo. Essa gradação interessa bastante a Lorena, a ponto de “O Amor e Sua Fome” mergulhar em zonas cinzas. Tem alegria, mas tristeza também. Toca no cotidiano, mas não esquece os fantasmas. A vida em pulsão e calor.
E se é assim, é porque tem muito da própria autora ali. Portela se vê com o mesmo humor de Dora – “meio esquisitinho”; igualmente acredita que o amor é a coisa mais importante; e passou por uma experiência quando jovem na qual, feito a protagonista, sentiu desejo e saudade de ser filha.
“Minha mãe sofreu um acidente de carro e eu tive que tomar conta dela. No momento em que escrevia o livro, quando esse tema começou a chegar, lembrei que reivindiquei esse lugar de ser filha da minha mãe. Mas fiquei pensando nas pessoas que não podem reivindicar esse lugar de nenhum jeito. Ninguém nasce mãe ou pai, mas todo mundo nasce filho. O quão esquisito é você nunca ser uma coisa que você já nasceu sendo. É muito doloroso”.
Histórias do e no Ceará
Com este segundo romance – capa de Elisa v. Randow e ilustração da também cearense Tereza de Quinta – Lorena sela duas histórias contadas no Ceará. A pergunta é se a pretensão é seguir assim. Resposta positiva. “Não sei se pra sempre, mas ainda não consegui fazer de outro jeito”.
Os dois próximos projetos – um infantil e um terceiro romance – seguem na mesma toada, embora ela não descarte que, no futuro, seja diferente. A autora costuma andar por Londres, ter ideias enquanto caminha. Pode ser que algo surja daí.
O que ela quer mesmo é continuar e investigar a fome do amor. “O amor tem muita fome. Fome de ser amado de volta. Acredito que dá pra amar sozinho, mas existe essa fome de reciprocidade”. Quanto às fomes internas dela, destaca: “Tentar viver um pouco mais tranquila, mesmo com tudo que está acontecendo no mundo”.
E continua: “Acho que minha fome é de sentir menos. É muito paradoxal isso porque acredito muito na força do sentimento. Mas, ao mesmo tempo, sentir tanta coisa traz muita perturbação. Viabiliza muito minha escrita, minha literatura, mas, no dia a dia, é exaustivo”.
Notadamente animada para o lançamento, Lorena celebra sobretudo a percepção da própria voz na literatura. Nunca acreditou que isso aconteceria, ser reconhecida pela escrita. Trabalhos como “O Amor e Sua Fome”, porém, demarcam um maior espaço da cearense em lugares cada vez maiores do fazer artístico.
A depender dela, de Dora, Esmê e Jaime, a estrada permanecerá larga e pulsante. Esfomeada. “Vou descobrir essa minha voz mais e melhor ao longo do tempo. Mas já é uma alegria muito grande entender que eu posso e vou continuar escrevendo”.
Serviço
Lançamento do livro “O Amor e sua Fome”, de Lorena Portela
Nesta sexta-feira (27), às 18h, no Complexo Estação das Artes (Rua Dr. João Moreira, 540 - Centro). Evento inclui debate, sessão de autógrafos e discotecagem com coletivo Tome Batom Vermelho. Entrada gratuita. Mais informações nas redes sociais da Estação das Artes