Não há definição única do que é horror. O medo e o estranhamento costumam impactar as pessoas de formas muito distintas, a depender de questões muito pessoais, como vivências, cultura e lugar de origem. Apesar disso, é certo que alguns indivíduos e grupos sociais podem ter um olhar mais apurado para o que apavora – por estarem especialmente sujeitos a certas monstruosidades.
Lançado em outubro deste ano, o livro “O Dia Escuro – Contos Inquietantes de Autoras Brasileiras”, organizado pelas escritoras Fabiane Secches e Socorro Acioli e publicado pela Companhia das Letras, busca demarcar a pluralidade e originalidade dos olhares femininos sobre o horror.
A coletânea chega em um ano especialmente cheio de produções de horror de destaque feitas por mulheres, especialmente na literatura e no cinema – ainda que uma atmosfera sombria sempre tenha sido presente em obras feitas por mulheres e muitas delas sejam responsáveis por clássicos do gênero, como as escritoras Mary Shelley e Shirley Jackson.
O livro reúne, em 20 contos inéditos, medos e opressões cotidianas compartilhadas por muitas mulheres, como a violência de gênero, o racismo e a transfobia, mas também um arcabouço de horrores fantásticos, como monstros, seres invasores de outros planetas e demônios.
A ideia de convidar 20 escritoras de diversas regiões do País – incluindo a própria Socorro Acioli e outras três autoras cearenses – para pensar sobre uma “poética do estranhamento”, como define Fabiane Secches, surgiu do aumento recente de escritoras publicando obras de horror na América Latina.
Nos últimos anos, nomes como Mariana Enríquez, Pilar Quintana, Dolores Reyes e Samanta Schweblin, entre outras, têm se destacado no mercado literário ao localizar narrativas de medo e violência sob uma perspectiva de gênero.
“Pensei em fazer a mesma coisa no Brasil, para que a gente se posicionasse também. Então, a ideia foi fazer uma escolha de autoras de uma forma mais plural possível, passando pelo Brasil inteiro”, explica Socorro Acioli, reconhecendo que um livro “ainda é pouco” e que a obra pode ganhar continuações para incluir outras autoras.
A coletânea conta com histórias inéditas das escritoras cearenses Dia Nobre, Jarid Arraes, Natércia Pontes e Socorro Acioli, além de outros nomes de destaque do cenário nacional, como Amara Moira, Andréa del Fuego, Lygia Fagundes Telles, Maria Valéria Rezende e Mariana Salomão Carrara.
Ainda que reduzida, a iniciativa traça um panorama interessante da produção ficcional contemporânea no Brasil. O primeiro conto do livro – O Dedo, de Lygia Fagundes Telles, publicado pela primeira vez em 1981 – nos lembra, porém, que não é de hoje que mulheres brasileiras escrevem sobre o fantástico e o inquietante com maestria.
A conexão entre o que parece banal – um passeio na praia, vínculos familiares, a busca por um emprego e a relação com o sagrado, por exemplo – e o absurdo dá o tom à maioria das narrativas, bem como a junção de referências clássicas do terror mundial e temas cada vez mais atuais.
“A gente está sempre com medo de algo, e eu acho que esses medos têm aumentado. Hoje em dia a gente tem muito medo das consequências da crise climática, muito medo da violência, muito medo da violência contra a mulher”, destaca Socorro Acioli. “Acho que a literatura é um bom caminho para elaborar isso”, completa.
Para a autora e organizadora, o livro serve como uma plataforma para ampliar a participação do Brasil na discussão de temas como medo, violência de gênero e feminicídio, que vêm sido amplamente debatidos em obras recentes de países vizinhos.
“Espero que com essa coletânea a gente possa ver, e que os leitores possam enxergar, essa produção acontecendo aqui também. Que essa preocupação estética e literária está acontecendo também entre as autoras brasileiras, tratando de usar os mecanismos que sustentam o texto de terror, ou para falar das questões contemporâneas e as questões de cada uma”, conclui.
Autoras cearenses reinventam subgêneros do terror
Mesmo com o foco em assuntos de importância política e social, as histórias contadas no livro não deixam de entreter e impressionar. Há contos mais indigestos, mas também os que se utilizam de boas doses de humor e ironia. Muitos deles também propõem uma reinvenção afinada de histórias e personagens já contadas em subgêneros conhecidos do terror, como o terror religioso, o terror psicológico e o slasher.
Exemplo dessa renovação de temas já conhecidos do público são os contos escritos pelas cearenses Natércia Pontes, Jarid Arraes e Dia Nobre. Cada uma a seu modo, as três autoras já haviam flertado com o gênero em outros momentos, mas foi em O Dia Escuro que puderam dar vazão ao horror de forma mais direta.
No conto “Chorona”, Natércia Pontes – autora de Copacabana Dreams (2012) e Os Tais Caquinhos (2021) – reinventa a antiga lenda mexicana La Llorona ao narrar a história de uma mãe que começa a pensar em matar as próprias filhas após assistir a um filme de terror.
“Pensei: o que há de mais horripilante na vida? Muitas coisas podemos ver nas notícias todos os dias. Mas, influenciada pela Chorona, o que me veio como um raio foi a ideia do filicídio”, conta.
Ao elaborar os passos anteriores a um crime considerado impensável, a autora aborda temas mais profundos, como maternidade compulsória e culpa materna. “Acho que horror e maternidade são dois temas que se entrelaçam harmoniosamente. Todo o processo, desde a gravidez até a criação dos filhos, é permeado de sentimentos ambíguos e intensos, e equivocadamente mitificado como algo santo pela nossa cultura patriarcal”, explica.
Acho muito importante uma coletânea só de mulheres, porque por muito tempo só homens brancos, poucas exceções à parte, tiveram maior visibilidade na literatura nacional (...) Acho necessário e bonito que nos unamos sempre. O mundo ainda é do patriarcado. E o tema do horror é fascinante e muito rico e plural. Neste mundo estranho em que vivemos, o horror se mistura com a realidade."
Já em “Pintinho Verde”, a caririense Jarid Arraes – autora de Redemoinho em Dia Quente (2019) e Corpo Desfeito (2022), entre outros – dá uma nova faceta ao já conhecido vilão de filmes de horror satírico, trazendo uma mulher sáfica como a psicopata que protagoniza o conto.
“Para mim, era muito importante trazer um casal de mulheres, porque já escrevi vários contos de amor ou discriminação em que mulheres lésbicas e bissexuais são personagens”, explica. “Mas dessa vez, quero mostrá-las sob outra luz, como seres complexos, temíveis, ou simplesmente vivendo outras histórias que não se limitam a discriminação e ao sofrimento”, completa.
A história contada pela escritora começa com uma daquelas frases que impactam o leitor de pronto: Tenho seis passarinhos dentro da caixa e todos estão mortos. A escolha da artista pela escrita afiada e direta reflete não só o estilo da própria autora, mas também a influência de outras escritoras de horror de quem Jarid é leitora assídua.
“O horror latino-americano escrito por mulheres é especial, é absurdo e real, é cheio do fantástico e cheio de violência. É uma interpretação de como experimentamos o mundo e o compreendemos a partir dos nossos lugares sociais”, pontua Arraes.
Além da coletânea, a paixão pelo horror tem ocupado outros setores da vida de Jarid: ela mantém um clube de leitura online e gratuito dedicado ao gênero, o Encruzilhada Clube, e se prepara para lançar o primeiro livro dedicado a contos de horror em breve. “Sou apaixonada pelo gênero, ele mexe comigo, me fascina e me diverte. É um campo delicioso de explorar”, comenta.
O horror é muito especial na minha vida, não apenas como entretenimento, mas como parte do que me faz pensar o mundo, refletir sobre mim mesma e sobre as pessoas e colocar isso na escrita. O horror é um gênero de crítica humana, de crítica social, e que consegue abraçar qualquer tema ou debate que se deseja fazer."
O Ceará como inspiração para uma escrita de horror “localizada”
Em comum, as quatro autoras cearenses que participam de O Dia Escuro compartilham uma mesma vontade: fortalecer a produção de uma escrita localizada geograficamente, que ressalta aspectos culturais e estilísticos do Ceará e do Nordeste, além de ecoar memórias pessoais.
“O que escrevo sempre está preenchido por minhas experiências sensoriais e afetivas no Cariri, como menina e mulher que fui e sou do sertão do Ceará, então em minhas obras sempre é possível encontrar nossas cores, nossa riqueza cultural e nosso sotaque”, afirma Jarid Arraes, que destaca que o uso de expressões e palavras tipicamente cearenses em suas histórias é “proposital e bem pensado”.
Também de Juazeiro do Norte, a escritora Dia Nobre também traz aspectos que remetem ao Cariri cearense no conto “Paixão de Santidade”. A história, que explora a complexa relação de uma mulher com a religião e o sagrado, conversa com a própria biografia de Dia, que cresceu em uma região cultural e economicamente pautada nas tradições e no turismo religioso.
“Fui criada por minha avó materna, uma mulher muito religiosa que me levava para as missas matutinas na Igreja dos Franciscanos. O impacto dessa educação religiosa foi tão forte que, quando eu entrei no curso de História, eu quis investigar como aquele espaço sagrado havia se formado”, lembra a escritora, que é doutora em História das Religiões e autora de Incêndios da Alma (2024), que resgata a história da beata Maria de Araújo.
Não me interessa explorar espaços já tão saturados como as capitais do eixo Sul-Sudeste. Ao contrário, desejo explorar a riqueza cultural e material que temos, e, principalmente, quebrar com os estereótipos e o senso comum que foi perpetuado nas produções sudestinas sobre a região."
Assim como na não-ficção, o conto de Dia Nobre se propõe a analisar a posição de subserviência das mulheres na igreja católica, bem como as diversas violências que a religião pode cometer contra corpos femininos, trazendo aspectos muito vívidos na cultura do Cariri, como a presença da penitência enquanto rito religioso.
“Nesse conto, eu me propus o desafio de repensar a figura das beatas a partir de uma personagem que, diante de um trauma, se apega à religião para dar sentido à sua existência e acaba sendo levada à loucura”, destaca.
Em meio às narrativas que misturam horrores cotidianos e elementos fantásticos, o conto de Socorro Acioli, “São Paulo é Como um Mundo Todo”, que finaliza a coletânea, aborda a xenofobia contra nordestinos que vivem no Sudeste do País – um resgate de experiências vivenciadas pela própria escritora.
“Tem pequenos horrores na vida, pequenos fantasmas na vida de uma pessoa que não são os fantasmas dos mortos. Os fantasmas que estão embutidos na violência das falas e do preconceito”, pontua a autora, que aborda o horror a partir do ponto de vista de quem é considerado “infamiliar”.
“Quis pensar em algo que fosse uma forma de horror não convencional, que é esse sofrimento pelos preconceitos e pela violência nas palavras que as pessoas às vezes não percebem, e que pode ser tão aterrorizante contra a aparição de um fantasma ou a perseguição de um vampiro – talvez até pior”, conclui.
O livro O Dia Escuro pode ser adquirido no site da Companhia das Letras, nas livrarias e em lojas virtuais.
Serviço
“O Dia Escuro – Contos Inquietantes de Autoras Brasileiras” (Companhia das Letras, 2024)
Contos de Amara Moira, Ana Rüsche, Andréa del Fuego, Carola Saavedra, Cidinha da Silva, Dia Nobre, Eliana Alves Cruz, Fabiane Guimarães, Flavia Stefani, Jarid Arraes, Laís Romero, Lygia Fagundes Telles, Marcela Dantés, Maria Valéria Rezende, Mariana Salomão Carrara, Micheliny Verunschk, Natalia Borges Polesso, Natércia Pontes, Socorro Acioli e Trudruá Dorrico