Ao fim de “Rio Sangue” – novo romance do cearense Ronaldo Correia de Brito, publicado pela Alfaguara – o leitor mais prático certamente ficará na cabeça com a frase “Conte-me uma história”. Pudera. O imperativo, simples e poderoso, não apenas nomeia uma das seções da obra, como convida a uma imersão particular pelos acontecimentos da trama.
Mas é o título da última seção – “Fale ou escreva, nosso mundo é o que é graças a isso” – que parece realmente dar o contorno do que é o trabalho. O projeto utiliza como cenário o Brasil Colonial para falar de personagens e temas que até hoje inquietam. A formação de nossa identidade, a riqueza de lendas e paisagens e o sertão sem descanso estão entre eles.
Parte do romance acontece em Pernambuco, na Bahia, em Portugal e na África. Mas tudo gira em torno das ribeiras do Jaguaribe, no Ceará, e dos afluentes dele. Nas palavras de Ronaldo, trata-se de um sertão profundo, fechado até a década de 1950. “Retorno ao universo onde nasci, tento desvendar sua história obscura”, diz o escritor ao Verso.
“Meus romances gravitam por muitos lugares, mas terminam nessas paragens sertanejas. Em ‘Rio Sangue’, tudo é real e ficção. Como lembra o narrador, nada disso aconteceu, mas sempre existiu”. O enredo é direto: narra a saga de dois irmãos, José e João, vindos de Portugal para desembarcar no Recife nos idos do Brasil Colônia.
Embora resistente – uma vez não se achar dotado de vocação para tal – José vira padre; João, por sua vez, é pura fúria e violência, casado por conveniência com Catarina. É ao redor desses dois parentes que segredos, paixões e assombros multiplicam-se, localizados entre o fim do século XVII e os primeiros 30 anos do século XVIII.
Como plano de fundo, muitos pontos se agigantam. Os indígenas dos sertões – do que veio depois a ser chamado de Nordeste – resistem à penetração dos invasores brancos. Os colonizadores trazem, em meio aos rebanhos, africanos e descendentes escravizados. Negros e indígenas são proibidos de falar as próprias línguas e praticar as culturas de origem.
Há resistência às leis da Coroa Portuguesa e da Igreja Católica. Linguagens se moldam em meio à repressão, ao extermínio e à negação. Misturam-se povos originários com africanos e portugueses em um mundo marcado pelo poder e a violência dos brancos.
“Qual o resultado do confronto? Ele persiste ainda hoje? Até que ponto moldou nosso país violento e socialmente desigual? O romance deixa que os personagens se narrem, contem suas histórias e tentem responder a essas perguntas”, situa Ronaldo, envolvido com os lançamentos da obra em solo cearense.
Nesta sexta-feira (18), às 19 horas, acontecerá no Instituto Cultural do Cariri. A proposta é uma mesa festiva, mediada pelo cantor Flávio Leandro, por Emanuel Leandro e Tibério Oliveira. Será a primeira vez que o autor lançará um livro no Crato.
Em 04 de novembro, às 18 horas, será o segundo momento, dentro das comemorações de aniversário do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará. Neste, fará uma conversa de abertura e, em seguida, o lançamento do romance.
Literatura de onde se é e se vive
Premiado autor de “Galileia” e de “Faca”, além de idealizador do consagrado “Baile do Menino Deus”, Correia de Brito confessa não ter competência nem coragem para escrever “Rio Sangue” há 28 anos, quando começou a publicar os próprios livros. Só foi capaz de desenvolvê-lo agora e, mesmo assim, custou-lhe um preço alto.
Durante os cinco anos em que morou no sertão dos Inhamuns, ouviu a história de uma mulher assassinada pelo marido. Esse feminicídio inaugural da chegada da família do cearense ao sertão marcou-lhe profundamente. “Jurei vingá-lo, mesmo tendo acontecido há três séculos”.
Escrever sobre o assunto, denunciá-lo e mostrar repulsa e horror ao crime foi a vingança. Não à toa, “Rio Sangue” é um romance extenso, polissêmico, com muitos afluentes narrativos. O feminicídio familiar, contudo, é o tema central. Muito decorre de uma verdade que Ronaldo carrega consigo: não consegue produzir literatura dissociada do mundo onde nasceu e vive.
“O cuidado que tenho é o de não fazer discursos, nem criar uma moral para as minhas narrativas. Continuo apreciando duas ideias do romantismo: a rejeição ao universalismo e o gosto pelo historicismo. À medida que o tempo passa, atualizo meu olhar sobre o mundo que me cerca e procuro nunca escrever o mesmo livro”.
Faz sentido. Neste último trabalho, por exemplo, nomes dos personagens intitulam cada capítulo, fruto do desejo do autor de conceder às próprias criações o direito de narrar da forma que preferirem, criando, assim, um universo miscigenado de falas. Como se fosse possível uma longa sessão de psicanálise em que muitos pacientes falam ao mesmo tempo.
Ronaldo viveu e ainda vive num mundo cheio de narradores. Não existe um único dia em que não escute uma boa história. Antes de se aposentar da Medicina, a ocupação do literato era ouvir relatos de pacientes. Criança ainda, percebeu que todas as pessoas esperavam a chance de narrar uma história.
“Aí, me tornei escutador. Digo ‘fale’, e as pessoas falam, choram, riem e contam as mais incríveis histórias. Eu as escrevo, reinventadas”. Para desenvolver “Rio Sangue”, foram quatro anos ouvindo e pesquisando sobre os mais variados assuntos. No trajeto, o escritor aprendeu mais sobre a invasão napoleônica à Rússia lendo “Guerra e Paz’, de Tolstói, do que nos compêndios de História.
Por isso mesmo, o romance, para ele, pode ser uma leitura agradável e trazer mais ensinamentos embutidos nas narrativas do que os compêndios especializados. “Tentei alcançar isso em ‘Rio Sangue’: despertar o interesse em conhecer a História do Brasil”.
Escrever no Brasil hoje
Com o costume de ler pelo menos 12 livros de jovens autores brasileiros a cada ano, o veterano busca se atualizar a partir do que está sendo publicado. Gostou muito, por exemplo, do romance “Vinco”, de Manoela Sawitzki, e de “Sem vista para o mar”, de Carol Rodrigues.
“Sempre li escritoras, sou devoto de algumas delas. Mas não me sinto no dever de falar que gosto de um livro apenas porque foi escrito por uma mulher”, destaca. Para tal, cita a coreógrafa americana Martha Graham quando esteve no Brasil e concedeu entrevista alertando que não falaria de sexo, política, nem da vida pessoal. Apenas de dança.
“Os livros publicados insistem nos temas de gênero, raça, política, desigualdade social, violência, drogas, sexo etc. Acho que são temas emergentes. Vozes caladas por séculos agora podem falar e escrever. Leio, aprecio e acompanho a onda. Tudo isso é definitivo? É apenas moda?”, questiona o cearense radicado no Recife.
Ainda não se sabe. Fato é que “Rio Sangue”, longe de seguir fórmulas, “se avermelha igual a um hematoma”, irrompendo em margens e barragens. Entre José e João, um oceano em tom rubro e de valentia crescente, atestando que a vida não consiste numa única história. A teia do mundo e das relações é maior, e atravessa os tempos. O passado ainda está.
Não sem motivo, Ronaldo revela que, após concluir o projeto, perguntou a si mesmo se voltaria a escrever. Será que os livros que existem não são bastantes? Escrever mais para quem? Ainda existem leitores? “Durante quatro anos atravessei um deserto, adoeci e, ao fim, dei num deserto maior. O mundo mudou aceleradamente”, percebe.
“Tateio para adaptar-me aos novos valores da sociedade, a uma nova moral, ao desprezo pela ética. Aposentei-me de Medicina porque já não compreendia as motivações dos estudantes do serviço onde trabalhava, não aceitava a indiferença que eles demonstravam pela dor dos pacientes. Recuei. Vivo recuando. Na Índia clássica, as pessoas se recolhiam à floresta, quando ficavam idosas. Fiquei velho, também preciso me recolher”.
Serviço
Lançamento do livro “Rio Sangue”, de Ronaldo Correia de Brito
Nesta sexta-feira (18), às 19 horas, no Instituto Cultural do Cariri (Rua Rui Barbosa, 1 - Pimenta, Crato; no dia 4 de novembro, às 18 horas, no Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará. Entrada franca nos dois eventos