Nascido e criado na comunidade do Poço da Draga, localizada na Praia de Iracema, Douglas Vasconcelos lembra bem de como despertou para a arte. À memória, vem o período em que o local onde reside era tomado por trabalhos de andarilhos, pessoas que estavam sempre visitando a praia e pintavam quadros.
“Eles tinham uma cultura de deixar uma obra ali, na antiga Ponte Metálica. Contemplando aquelas criações, achei interessante e acabei absorvendo aquilo, tendo a ideia de também estar fazendo esse tipo de intervenção nos espaços”.
Tornou-se Doug, como é popularmente conhecido no meio desde a década de 1990, quando iniciou a carreira. E é compondo a paisagem artística desse pedaço querido de Fortaleza, num movimento de transpor os muros e levar diferentes cores adiante, que ele integra a equipe do projeto Spray do Bem.
A iniciativa nasceu com a Casa Jacarepaguá e a Galeria Crua, em São Paulo, e tem como foco convocar artistas a dar uma nova vida a latas de spray – geralmente descartadas após o uso em intervenções urbanas – a partir da pintura delas, tornando-lhes obras acessíveis.
Metade do valor arrecadado com a venda das peças dará suporte básico aos mais necessitados, fortemente impactados pelas consequências do novo coronavírus. Em São Paulo, são pessoas em situação de rua os beneficiados; por aqui, moradores do Poço da Draga, comunidade de grande vulnerabilidade social, é que receberão o auxílio.
“No total, 50% do valor vai para os residentes na comunidade, 40% será destinado ao artista e 10% para a logística de entrega e outros processos”, detalha Terezadequinta.
A artista visual é curadora do projeto em Fortaleza, juntamente ao também artista Robézio Marqs. Ambos são fundadores do Coletivo Acidum Project e idealizadores e diretores do Além da Rua – Festival Internacional de Artes e Conexões.
Eles assumiram o posto no Spray do Bem após convite das entidades paulistanas criadoras da ação e, na capital cearense, convocaram 20 artistas, em igual número de homens e mulheres.
“Convidamos cada um por meio das nossas redes sociais e priorizamos aqueles que já trabalham com essa pegada da street art, do graffiti. Eles já teriam esse material, o spray e a tinta látex, em casa. Estamos todos, então, atuando home office”, conta Tereza.
Desde sexta-feira (24), as latinhas, já finalizadas, começaram a povoar o feed do perfil do Além da Rua no Instagram (@alemdaruafestival), e poderão ser adquiridas também por lá, no valor de R$ 550, com possibilidade de parcelamento em até três vezes.
Toda a ação em Fortaleza é feita em parceria com o Além da Rua, a ONG Velaumar e o Instituto Iracema. A ideia é que, em breve, mais 20 artistas possam integrar o time.
Sensibilidades
São muitas as faces que as latinhas de spray assumem mediante o trabalho dos profissionais: desde representações de gatos (naquelas feitas por Bruna Beserra), passando por identidade negra (Dinha) e traços de nossa terra (Almeida Luz), a diversidade é imensa.
Artista plástica e muralista em Fortaleza, Laura Holanda é uma das participantes do projeto e afirma que trouxe para as latas sob sua assinatura elementos figurativos, corações humanos, padronagens e cores bastante saturadas. Em suma, abstrações.
“Elas são muito incertas: você não sabe o que espera daquele pincelada ou traço. Acredito que é o reflexo do que estamos vivendo, a questão do que não está ao nosso alcance”.
Envolta por colagens, quadros, pincéis e farta gama de criações policromáticas, confinada na casa-ateliê que reside e mantém, ela situa que a arte, por si só, já exerce o papel central de combustível, manifesto, resistência e existência, alcançando ainda maior relevância nesse período.
Por isso, chama a atenção para que não possamos apenas consumir diferentes produtos artísticos, mas que deixemos talentos aflorarem, dissipando o desassossego, alavancando possibilidades em meio aos desafios.
“As pessoas estão conseguindo acessar agora uma sensibilidade que estava ali, guardada. Todo mundo tem esse sentimento de alguma forma, e muitos acabam não nomeando arte várias coisas que são arte, mas que passam despercebidas, como a música que ouvimos. O projeto Spray do Bem, assim, veio na hora certa e somos nós, artistas participantes, que ganhamos também por podermos enxergar a diferença que essa iniciativa exerce na vida do outro”, diz.
E já há um comprometimento por parte de Laura para depois da pandemia: abraçar ainda mais atividades com esse propósito. “A quarentena está gerando esse movimento de olhar para o lado e perceber hábitos que podem ser potencializados e se multiplicar”.
Amplitudes
Thyagão, chargista do Diário do Nordeste e outro participante do Spray do Bem, detalha que o processo criativo adotado por ele para concepção das pinturas começa numa folha de caderno, rascunhando, até chegar a um resultado.
Por estar em isolamento social, o artista produz calmamente, deixando a inspiração ir ganhando os tons aos poucos. O esforço se traduzirá em duas latas.
De antemão, Thyagão já sente o aconchego no peito por unir arte e solidariedade e colaborar com as famílias de um espaço tão querido por ele.
“Muita gente passa pelo Poço da Draga, devido à Praia de Iracema, mas ninguém dá muita importância. Eu sempre tive uma relação de olhar, de percebê-los. Ainda não tive oportunidade de pintar lá, mas já está jurado um espaço na comunidade para eu fazer o meu trabalho também”.
é o número de artistas participantes, em igual número de homens e mulheres, do Projeto Spray do Bem, na Capital. Trabalhando em casa, eles ressignificam latinhas de spray ao transformá-las em peças artísticas. As temáticas são amplas, contemplando desde abstrações, caso da muralista e artista plástica Laura Holanda, como o cotidiano pessoal durante o isolamento, feito fez a grafiteira Narah Adjane
E completa: “O papel da arte nesse momento é fundamental, vai muito além do entretenimento. Consumi-la ajuda a enaltecer vários sentimentos, alimentar a alma. Poder ajudar com o que eu faço é muito gratificante. Digo que sou um privilegiado de poder estar em casa, com meus filhos, sem faltar nada. Mas essa pandemia levou muita gente à estaca zero, de fome, de desespero, desemprego. Espero que as pessoas comprem as latas para ajudar um lugar que necessita tanto”.
Da parte de Terezadequinta, a vibração é a mesma: é bom passar a integrar um forte movimento iniciado por vários setores da cultura e das artes para dar vazão aos mais vulneráveis neste conturbado período.
“Quando a gente recebeu o convite da Galeria Crua e da Casa Jacarepaguá, ficamos muitos felizes, porque já estávamos admirando o trabalho. Estamos com uma boa expectativa de vendas, e eu espero poder ajudar também os artistas, que vivenciam um momento muito delicado, tendo em vista que a maioria é autônoma”.
A curadora igualmente adianta o desejo para que o projeto continue quando tudo passar, abraçando possivelmente uma nova configuração.
“Estamos conversando com as casas idealizadoras, em São Paulo, e também com o Instituto Iracema para pensar talvez uma exposição, antes de entregar as latas para os clientes, quando a pandemia acabar. Mas ainda está no campo das ideias”.
Serviço
Latas do projeto Spray do Bem
Visualização de modelos e venda pelo perfil @alemdaruafestival. Valor: R$ 550, podendo parcelar em até três vezes
> Conheça a relação de artistas participantes do projeto Spray do Bem em Fortaleza:
Terezadequinta: @terezadequinta + @acidumproject
Dinha: @dinhagraffiti_
Ceci Shiki: @cecishiki
Bruna Beserra: @brunabeserra
Narah Adjane: @narahadjane
Marta Brizeno: @desenhabrizeno
Laura Holanda: @lauraholanda_
SU: @s.b.r.b
Ju chooo: @ju.chooo
Terroristas del amor: @terroristasdelamor
Robézio Marqs: @robezio + @acidumproject
Ramon Sales: @ramonsales
Berin: @berin.art
Thyagão: @thyagocnc
Juliao: @juliaojr
Luz Almeida: @almeidaluz7
Pirata: @piratahemfil89
Doug: @douggraffiti
Mali: @mali8
Gabriel Qroz: @gabrielqroz_